( epígrafe)
O romancista põe peito à reformação das obras de Deus, e corrige-as. Quando os seus personagens se avisinham de algum sujo aguaçal, em que é uso a gente commum salpicar as botas, atam-lhe asas de serafins e largam-lhe trella por esse azul dos céus dentro, até lhes vir a geito poisal-os em alegretes de flores. (*)
Camilo Castelo Branco
In: Prefácio da Terceira Edição do Romance “O ESQUELETO”. Lisboa, 1902
(*) Ortografia original
O Rosto dos Serafins
I
A palavra surrealismo já apareceu associada ao nome de Tomaz Vieira*. Contudo, julgo que não se poderá dizer que este pintor é surrealista. Nunca ele disse de si tal coisa e é pouco provável que algum dia o venha a dizer. Todavia, julgo que podemos encontrar uma zona de contacto entre a sua obra e esse movimento cultural sem que uma coisa se converta, necessariamente, na outra.
Acontece que o surrealismo, na sua essência, pretende ser um libertador do inconsciente, a parte mais blindada do eu, aonde só tem sido possível chegar através de processos psicanalíticos agressivos. Por isso as obras surrealistas são muitas vezes desconcertantes porque se percebe que os artistas ficam sempre na fronteira entre o consciente e o inconsciente. Para se falar do inconsciente é sempre necessário utilizar a racionalidade criando-se uma zona de conflito que os artistas pretendem resolver de modo a tornar o discurso inteligível. Há artistas que, junto à fronteira acima referida, conseguem avançar um pouco mais, não sendo necessário que se denominem surrealistas. Ninguém vai a essa zona da psique humana sem inquietação. Dê-se o nome que se der a uma obra de arte que tem origem nas profundezas da alma o resultado é sempre estranheza e inquietação. Cito como exemplo António Dacosta que mesmo nas suas últimas obras, depois do longo interregno a que se impôs, e, de certo modo, afastando-se do surrealismo, nos traz uma simplificação extraordinária vinda da memória mais profunda do seu eu individual. Se há pintor açoriano que se move nessa zona do ser é Tomás Vieira. Tudo o que tem feito, e é notável a aceitação que tem tido junto dos seus conterrâneos, é a representação de uma inquietação larvar que existe no povo das ilhas. Um povo que produz o milagre do Arcano da Ribeira Grande, se habitua aos tremores de terra e procura nos ritos religiosos o equilíbrio filosófico da sua existência. O gosto da encenação deve remontar às origens do povoamento reforçado mais tarde pelo espírito da Contra Reforma quando o culto religioso se transformou numa festa para os sentidos. A festa de carácter religioso foi sempre acompanhada de manifestações que escapavam ao controlo da Igreja e mergulhavam fundo num substrato ancestral. Foi com esse pano de fundo que surgiram os Bicéfalos, a exposição mais insólita do pintor. Porquê bicéfalo? julgo que nem o pintor saberá. A representação bicéfala vem desde a Antiguidade Clássica, encontra-se nas civilizações pré colombianas e surge nos povos africanos. Aparece igualmente na Arte Persa e no Românico. Num dos mais famosos livros de Ficção Científica “Um Cântico para Leibowitz” de Walter Miller, surge uma mulher bicéfala que tem um papel fundamental embora esotérico no desenrolar da história. Não conheço a explicação para tudo isso mas a razão fundadora desse arquétipo estará no inconsciente milenar da humanidade, escondido para todo o sempre. Nada de especial que ele tenha surgido num pintor tão enraizado no substrato cultural das ilhas, propício ao maravilhoso e ao fantástico. Veja-se a introdução ao livro “As Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso (séc. XVI) que tão próximo estava da formação simbólica do pensamento colectivo do povo açoriano.
II
A primeira vez que Tomás Vieira me mostrou alguns quadros da presente exposição eu exclamei: isto são retratos! Ao que ele respondeu mais ou menos o seguinte: são retratos de pessoas que não existem. Não foram exactamente estas as palavras mas foi esse o seu sentido. Deste breve dialogo se constata que existe uma técnica do retrato, melhor, existe uma expressão própria do retrato. Ou seja, na representação da pessoa humana há uma que é retrato e outra que não é. E é previsível que se consiga discernir uma da outra. O que define o retrato é a sua caracterização, o carácter da pessoa representada a sua distância do estereótipo. Quando um artista faz um retrato procura fixar as linhas, os traços que definem o modelo. Um bom retrato diz sempre alguma coisa que está para além da aparência física do modelo. São disso bons exemplos os retratos que o pintor tem feito. Quando se desenha um rosto que não é de uma pessoa real, quando, por exemplo, se pretende representar um ser mitológico, um deus ou uma ninfa, os pressupostos básicos do artista são a iconografia sedimentada ao longo dos anos. O mesmo se passa na representação da divindade e dos santos. No retrato procura-se alcançar “a alma” da pessoa. No “não retrato” não se pode procurar a alma porque ela não existe. O que há é uma quantidade de atributos que se procura funcionem na sua interpretação. Trata-se basicamente de um problema de iconologia. É por isso que o retrato, enquanto tal, não sofre muitas variações ao longo dos tempos. Variam os costumes, a indumentária, as atitudes, mas os elementos que fazem de um retrato aquilo que ele é variam pouco. Mesmo nos retratos dos cubistas vamos encontrar os elementos que caracterizam o modelo.
A grande novidade nestes trabalhos do Tomás é a inversão do caminho. Ele parte para a criação de um retrato servindo-se de alguns apontamentos tirados de pessoas reais. Mas não é sua intenção retratar essas pessoas. Nessa fase prospectiva ele inicia a procura dos elementos essenciais que definem o retrato, “um retrato”. Dizia-me, com propriedade, um mestre escultor que só é possível fazer o retrato de uma pessoa quando a tratamos por tu. E isso significava que já tínhamos um conhecimento tão profundo dessa pessoa que a sua psique apareceria inevitavelmente na obra. Se isso acontecer o aparecimento da pessoa na obra acabada é tão surpreendente para o próprio artista como para qualquer observador. O pintor, ou escultor, vai-se aproximando, a pequenos passos, do seu modelo até que ele aparece como se fosse uma revelação. Um retrato é sempre uma revelação e é sempre uma surpresa. Ora o Tomás quando inicia o seu trabalho vai, não à procura do perfeito conhecimento de uma pessoa mas dos elementos plásticos que caracterizariam uma pessoa. Esses elementos vão dar origem a uma pintura que tem todos os elementos de um retrato mas que não representa ninguém. Ou seja, à medida que o trabalho progride vai surgindo o retrato como se o artista estivesse a criar um novo ser humano. Claro que um artista com o percurso de vida de Tomás Vieira possui na memória um enorme acervo de tipos humanos. Daí que a personagem que aparece no retrato terá, provavelmente, ou inevitavelmente, algo a ver com alguma pessoa que existe ou existiu. O interessante é que esse retrato se projecta no futuro: é o retrato de uma pessoa que pode vir a existir. Nesse sentido estes quadros de Tomás Vieira são intemporais. Passado, Presente e Futuro encontram-se condensados numa porção de matéria plástica expressiva.
Aqui lembro-me de Pirandello e da sua peça “Seis personagens à procura de um autor”. Trata-se de um jogo cénico em que seis personagens, abandonadas pelo seu criador, procuram que o director de cena assuma essa paternidade, única forma de poderem existir teatralmente. É como se os retratos de Tomás Vieira andassem à procura de modelos de que eles seriam a representação. Tal como Pirandello, Tomás Vieira move-se um pouco nos limites do absurdo. E o absurdo como elemento filosófico moderno é praticamente contemporâneo do surrealismo. Muitas vezes os artistas metem-se por determinados caminhos levados por impulsos cujas motivações não são totalmente conscientes. Mas o artista é, antes de mais, uma espécie de diapasão que começa a vibrar quando lhe chega um determinado estímulo. A compreensão da natureza dessa espécie de ressonância só vem depois quando os objectos começam a interagir com as outras pessoas, ou seja, com as ideias, conceitos e preconceitos da sua época. Nestes quadros de Tomás Vieira desenvolve-se uma galeria de tipos humanos, que podem ser de qualquer lugar, mas são seguramente de açorianos. Tipos que se expõem. Expõem-se, não fundamentalmente, no seu aspecto físico mas, principalmente, na sua vivência interior. Podíamos designá-los como retratos psicológicos. Mas eu diria antes retratos existenciais. Há, como sempre na obra deste pintor, uma encenação de tipo teatral mas onde o teatro é o da vida. Os grandes planos de uma só cor, que por vezes se interpenetram, colocam os personagens numa dialéctica argumentativa onde o interlocutor é a sua própria existência e o argumento as contingências da vida. Não falta a ligação metafísica a que nenhum ilhéu se pode furtar. Os anjos não têm asas. Estas são apenas um indicador da sua natureza. Nos anjos de Tomás Vieira têm apenas essa função. Os anjos podem ser “da guarda”, mas, com umas asas tão pequenas ninguém acredita no seu poder protector. O seu aspecto é tão humano, tão frágil que quase parecem pedir ajuda. E aqui parece-me encontrar uma inteligência inquieta que não encontrou o ponto de equilíbrio entre uma possível verdade absoluta e uma existência demasiado contingente.
Tecnicamente Tomás Vieira encontra-se numa fase de domínio absoluto da matéria pictórica. Não há a mínima concessão a facilidades que a sua larga experiência podia permitir. Percebe-se que a feitura desta obras levantou alguns problemas de execução, sente-se o trabalho da procura e a marca da oficina. A pintura de Tomás Vieira insere-se numa tradição de algumas centenas de anos o que não o tem coibido de utilizar uma gramática moderna. É sempre um prazer ver, ou rever, aquele meticuloso trabalho do tratamento da cor, do sentido táctil da textura que resulta desse tratamento, que nos transporta para a intimidade do atelier. No caso da presente exposição não consigo dissociar o pintor Tomás Vieira do cidadão das ilhas que ele é. Se quisermos encontrar as pessoas a quem os retratos agora apresentados possam servir devemos procurá-las olhando à nossa volta. Talvez encontremos algum que nos sirva pessoalmente. Mas certamente que a qualidade humana, no que tem de melhor e de pior, que percorre os ilhéus, aflora nestes quadros que podem ser o paradigma de uma galeria de tipos: simplesmente pessoas.
José Maria de França Machado
Sala de Exposições Temporárias
26/09/2011 - 31/07/2012
13:00 - 17:30
5€ / 3€ Maiores de 65 / Entrada Livre Menores de 18 / 6€ Visita Guiada