Primavera / Estio / Otono / Inverno
Azulejaria: um diálogo com o espaço:
“…O Homem, que fora a norma do Renascimento, transfigura-se no século do barroco em agente simbólico, e tudo é compreendido desde que seja humanizado, não só nos seus aspetos realistas mas em exaltações hiperbólicas.” (Santos Simões, 1979, p.43)
A frase de Santos Simões sumariza a essência da estética barroca, iluminando as opções formais desta corrente que em Portugal encontrou o seu lugar na riqueza e fausto do reinado de D. João V e que se podem resumir numa palavra; teatro. É nesse sentido – cenográfico – que o revestimento azulejar vai cumprir o importante papel de se articular e animar as paredes de naves, abóbadas, salões, vãos, corredores, entradas e jardins de conventos, igrejas, palácios, quintas e casas senhoriais que vão ser invadidos por silhares e painéis de azulejos, montando um verdadeiro espetáculo dos sentidos.
As temáticas decorativas, assentes num vastíssimo repertório iconográfico sacro, profano e ornamental, cumprem as mesmas exigências; na maior parte dos casos, é mais relevante a tradução visual, a qualificação estética e o equilíbrio, porém, em casos mais eruditos, a unidade temática cria verdadeiras narrativas adaptadas ao espaço. As opções eram infindas mas por vezes era a própria arquitetura que condicionava a escolha temática; era o caso de espaços que ‘obrigavam’ a uma imaginária condicionada a um certo número de painéis havendo séries iconográficas que se coadunavam com esta relação; séries de dois como o Dia e a Noite, o Sol e a Lua e o Bem e o Mal, séries de três como as Virtudes Teologais e a Trindade, de quatro como as Quatro Estações, os Quatro Continentes ou os Quatro Elementos, de cinco como os Sentidos, os Dias da Criação, de sete como as Dores e os Prazeres de Maria ou os Planetas, de nove como as Artes e as Musas ou séries de doze como os Meses do Ano, o Zodíaco e os Apóstolos.
As Quatro Estações e o Homem Barroco:
Primavera
A temática das Quatro Estações conheceu grande fortuna na Europa do século XVIII juntamente com outras relacionadas com o conhecimento do Mundo, da Natureza e do Homem como as Quatro Partes do Mundo, os Quatro Elementos, as Fases do Sol e da Lua, os Pontos Cardeais, os Cinco Sentidos e o próprio Tempo, cujo implacável decorrer rege a cadência do cosmos, num ciclo de eterno retorno. Se bem que desde muito cedo o Homem se apercebeu da importância dos fenómenos da natureza e da sua influência no quotidiano, a reflexão nesta época enforma uma curiosidade científica revelando um Homem que procura entender o seu mundo – do qual se apercebeu da verdadeira dimensão desde a gesta dos descobrimentos que abriu ‘novos mundos’ ao conhecimento.
A retórica do barroco, submetida a um sentido pedagógico, exalta a visualidade usando o poder da imagem como veículo. Nesse sentido é a linguagem alegórica, como processo de figuração que se vai constituir numa enciclopédia visual. Alguns temas iconográficos foram tomados pela arte barroca como reflexo da visão do mundo, é o caso das Quatro Estações, das Quatro Partes do Mundo e dos Quatro Elementos que assim partilham a evocação de um cosmos simbólico.
A provar a popularidade da temática, são vários os painéis de azulejos coevos versando diferentes versões de representações das estações do ano que revestem as paredes de palácios e jardins setecentistas.
A linguagem estética da azulejaria na passagem do barroco para o rococó:
Estio
Estilisticamente, os painéis da Casa-Museu Medeiros e Almeida inserem-se no ciclo da chamada ‘grande produção joanina’, mais concretamente numa segunda fase, a partir de cerca de 1730, dominada pela oficina de Bartolomeu Antunes na sua parceria com Nicolau de Freitas (futuro genro), um período de transição em que se dá a introdução da estética rococó.
Bartolomeu Antunes (1688-1753), mestre azulejador e dono de oficina própria, trabalha numa época de mudança de gosto em que a linguagem do barroco vai paulatinamente dando lugar à do rococó. Esta mudança está patente na sua obra final – como é o caso dos painéis em análise.
No período da ‘grande produção joanina’(segunda década do séc. XVIII), que se segue ao ciclo dos ‘grandes mestres’ começou a afirmar-se uma tendência menos individualizada e erudita, que se prolongou até meados do século e que correspondeu à fase final da azulejaria barroca, que procurava a rapidez para atingir a alargada clientela – nomeadamente do Brasil-, através do uso de receitas decorativas e figurativas e de uma técnica pictórica mais ligeira, facilitada pelo recurso a aguadas azuis, completadas por apontamentos a pincel mais cuidados. É nesta época que aparecem os ciclos de painéis historiados caracterizados por uma simplificação das partes figurativas e uma celebração decorativa dos enquadramentos (cabeceiras recortadas) e a recorrência a elementos decorativos como serafins, sanefas, franjas e pilastras reforçando a espacialidade da arquitetura. Cerca de 1740 surge a gramática ornamental do rococó – o chamado ‘ciclo pré-terramoto’ -, que suaviza as formas, diminuindo a importância dos enquadramentos e perdendo densidade nos ornatos e integrando progressivamente elementos como concheados assimétricos, ‘asas de morcego’, volutas, fitas, laçarias, aves, vasos floridos, sanefas e cartelas.
Análise Formal:
Otono
Os quatro painéis de azulejos figurativos, representando a “Primavera”, o “Estio”, o “Otono” e o “Inverno” pertencem ao espólio em exposição da Casa-Museu Medeiros e Almeida, estando colocados na Sala do Lago. Tratam-se de painéis de sabor decorativo na estética da transição do barroco para o rococó, apresentam as mesmas características tipológicas; a moldura exterior repete-se, representando cada pintura central, uma das estações do ano. Os painéis são monocromáticos sendo pintados a azul-cobalto sobre a superfície branca vidrada.
Os painéis compõem-se por exuberante moldura exterior recortada e pintura central. Os campos figurativos dos painéis são delimitados por moldura exterior que funciona como enquadramento cenográfico à ‘cena’ que se desenrola no seu interior indicada pela inscrição da cartela. As cenas são estruturadas por uma figura ou grupo figurativo em primeiro plano, outros grupos de personagens secundários e fundo de paisagem sendo notória alguma simplificação do discurso narrativo.
Toda a composição é desenhada com contornos a azul forte, no geral as regras da representação como a figuração humana, os panejamentos e a perspetiva são respeitadas mas as figuras são um pouco estereotipadas, destoando do cuidado da cercadura. O tratamento da paisagem, apesar de naturalista, é menos descritivo sendo esta maioritariamente pintada a aguada (pincelada menos densa). O aproveitamento das potencialidades pictóricas do azul-cobalto – através de hábeis jogos de luz e sombra – empresta volume e movimento à composição num trabalho de ‘trompe l’oeil’ que confere igualmente verosimilhança; dir-se-ia estarmos em presença de elementos de arquitetura em mármore, profusamente decorados com escultura adossada.
Análise Iconográfica:
Inverno
“Desde os tempos mais recuados que a iconografia das Quatro Estações tem sido figurada sob várias formas (…) O tema teve a sua origem na Antiguidade clássica (…), no período helenista que a sua iconografia foi fixada em quatro figuras distintas com os respectivos atributos…”.
O ciclo figurativo das Quatro Estações em análise segue um tipo de representação comum; para além de se tratarem de alegorias interpretadas por personificações convencionais de cada estação do ano com os seus atributos, as figuras representam igualmente deuses do panteão mitológico que, devido aos seus atributos e diversas valências, se identificam com as diferentes estações.
Descrição:
Vénus – Primavera
A Primavera é personificada pela deusa Vénus, divindade do Amor e da fertilidade, como tal associada à vegetação e aos jardins. Os seus atributos são as flores – símbolos da estação em que florescem renovando a vida -, que a jovem personagem cheira e que lhe são oferecidas pelos putti (crianças aladas) que são o seu atributo. O carro que se representa nas nuvens é o seu carro triunfal, normalmente puxado por cisnes ou pombas. A cascata evoca a água necessária à renovação da natureza que se dá na Primavera.
Apolo – Estio
O Verão é Apolo, deus do sol que por isso evoca a estação do ano mais solarenga. O Verão é um belo jovem que aqui se representa sem os seus atributos (raios de sol) sendo que a coroa de espigas de trigo e o fardo remetem para o cereal que é ceifado nos meses de verão. A figura feminina poderá simbolizar os amores que o belo deus despertava, a jovem refresca o pé no lago sugerindo as altas temperaturas que se fazem sentir nesta época do ano.
Baco – Otono
Baco personifica o Outono, esta figura é a mais usual destas representações mitológicas pois Baco é identificável pelos seus atributos – a coroa de uvas e parras, o tirso envolto em parras e a videira que cresce em paisagem. A figura feminina que acompanha o deus pode representar uma atordoada Bacante com dificuldade em se levantar após mais uma orgia.
Saturno – Inverno
O Inverno é o deus Saturno, divindade que representa a agricultura, como tal apropriado à representação de uma das estações. O facto de o personagem estar agasalhado e a aquecer-se junto a uma fogueira, evoca um tempo frio. Os atributos que o identificam como Saturno – ser velho e ter asas – estão associados a outra personificação da deidade, o Tempo (igualmente concordante com a temática em questão).
Os personagens secundários do painel envolvem-se em atividades relacionadas com a temática apanhando canas para a fogueira. Ao contrário do que acontece em algumas representações mais elaboradas das estações do ano, a paisagem de fundo dos painéis não sugere a natureza e condições climatéricas próprias das estações representadas.
Atribuição e Datação:
Santos Simões atribui este conjunto de painéis a Bartolomeu Antunes, datando-os de meados de setecentos: “…Serão provavelmente da fabricação de Bartolomeu Antunes, de cerca de 1750.”. Esta atribuição é feita, à falta de assinatura, por reconhecimento do ’estilo de pintar’. A mão de Bartolomeu Antunes identifica-se pela “…realização correta das figuras, algo estereotipadas e artificiais, mas servidas por uma pintura expressiva, envolvidas por magníficos enquadramentos de excelente carácter cenográfico e teatralmente dispostas sobre altos rodapés decorados que evocam os palcos de teatros barrocos…”.
A datação atribui-se atentando à tipologia formal e da gramática decorativa; os painéis – conforme já analisado -, apesar de anunciarem a estética do rocaille, ainda não se libertaram totalmente do ‘peso’ da decoração dita arquitetónica barroca, da cenografia em ‘trompe l’oeil’, tão bem patente nas cercaduras. Quanto à pintura o facto de ser pouco criativa indica a esteriotipação característica de meados da centúria de oitocentos.
As Gravuras:
As fontes de inspiração temática dos azulejadores do século XVIII eram essencialmente álbuns de estampas flamengas, francesas e italianas que circulam à época na Europa. Os artífices portugueses, à falta de formação académica (por circunstâncias relacionadas com a situação político-religiosa de Portugal), não eram os criadores das composições que pintavam, tendo, porém, o mérito de fazer uma transposição de escala da pequena gravura para o espaço da arquitetura a revestir. As estampas, existentes nas oficinas ou escolhidas das bibliotecas dos encomendantes, eram fielmente copiadas ou interpretadas, nomeadamente no que respeita aos fundos de paisagem que eram reinventados e adaptados para harmonizar a temática com o espaço disponível e com os restantes painéis.
No caso dos painéis em estudo, não se encontraram (ainda) as gravuras mas verificamos que a mesma matriz esteve presente na decoração azulejar da varanda-galeria da Quinta de Nossa Senhora dos Prazeres (Buraca), sendo esta mais tardia, de cerca de 1780, apresentando já um programa decorativo do rocócó pleno. Os personagens principais foram fielmente copiados, mas os fundos de paisagem são diferentes dos da Casa-Museu (mais criativos), com exceção do painel do Inverno.
Proveniência:
Os painéis em análise foram adquiridos – juntamente com outro conjunto de quatro painéis representando as Quatro Partes do Mundo – ao Monsenhor James Sullivan, último diretor do Colégio dos Inglesinhos. O Colégio dos Inglesinhos era uma instituição de frades católicos irlandeses sediada em Lisboa desde os meados do século XVII, com seminário num palácio na Luz em Carnide (hoje a Escola Secundária Vergílio Ferreira). A Ordem retirou-se de Portugal nos anos setenta. Os painéis encontravam-se no 1º andar do edifício, nos “… espaços compreendidos entre as grandes portas do salão principal…”.
Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia :
FREITAS, Maria João Lynce Costa Pais de, Iconografia da Memória na Azulejaria do Século XVIII Quatro Estações, Quatro Elementos, Quatro Partes do Mundo, Tese de Mestrado em História da Arte, Vol I/II, Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1994 (ref.: T1592/1/2)
(RIPA, Cesare); BARJA, Juan, BARJA, Yago (trad.); Iconología, Tomo I / Tomo II, Madrid: Akal/ Arte y Estética, 2007
SIMÕES, José Manuel dos Santos; GUSMÃO, Artur Nobre de (Introd.); Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Vol.6, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979
Relatório de inventariação do património azulejar do imóvel situado na Rua do Seminário nº 7 (Luz-Carnide), efetuado para a Câmara Municipal de Lisboa, conduzido pela Conservadora-chefe dos Serviços dos Museus, Drª Irisalva Moita, 17 de Março de 1972 – Arquivo da Casa-Museu Medeiros e Almeida
início/meados séc. XIII
Portugal
Faiança vidrada pintada a azul cobalto
Alt. 264 cm. x Larg. 295 cm. (c.370 azulejos).