“Opus Lemovicense” Destaque Agosto 2012

“Opus Lemovicense” Destaque Agosto 2012

A coleção Medeiros e Almeida possui um pequeno núcleo de peças de esmalte de Limoges, trabalho conhecido como “Opus Lemovicense”, entre as quais se destaca um crucifixo em cobre dourado e esmaltado em champlevé, da primeira metade do século XIII.

 

O trabalho em esmalte; materiais e técnicas:

O esmalte é uma matéria vítrea transparente, à base de sílica, ao qual se juntam óxidos metálicos para dar a cor; o ferro dá os vermelhos, o cobalto os azuis, o cobre os verdes o zinco o branco, o manganésio usa-se para o violeta e o antimónio, o chumbo ou a prata produzem os amarelos.

A cidade de Limoges em França (departamento de Alte Vienne, Nova Aquitânia), localiza-se numa região rica em socos cristalinos e em jazidas metálicas pelo que foi um grande centro produtor de peças de esmaltes que ficaram conhecidas como ‘opus lemovicense’ devido ao nome romano da capital, a cidade Lemovice.

 

Das duas técnicas mais utilizadas no trabalho de esmaltes – o cloisonné e o champlevé – a segunda foi a mais usada no ‘opus lemovicense’. A diferença está no modo como os alvéolos são criados; o cloisonné consiste em soldar prependicularmente, sobre uma placa de base – normalmente ouro -, finas lâminas do mesmo metal que seguem o contorno do desenho formando alvéolos que são preenchidos com pó de esmalte. Esta técnica impunha uma certa rigidez às composições. O champlevé foi adotado no decorrer do século XII, esta técnica consiste em seguir um desenho gravado numa chapa escavando de maneira a criar depressões; os alvéolos daí resultantes são preenchidos com pó de esmaltes. O material de suporte é geralmente o bronze – material mais resistente -, o que permitiu grandes avanços técnicos, como uma maior liberdade e definição do desenho e uma mais eficaz separação das cores. As peças depois de irem ao forno e de serem polidas – são inteiramente douradas (salvo nas zonas esmaltadas).

 

As origens do trabalho do esmalte:

A arte de aplicação de esmaltes sobre metal remonta à Antiguidade, tendo sido, provavelmente, o Extremo Oriente o seu berço. Civilizações como a chinesa, a grega, a russa a celta e a bizantina trabalhavam o esmalte, em cloisonné, desde épocas remotas. A Europa tomou contacto com estas peças através de presentes trocados entre cortes, mas o casamento de Otão II (Sacro Imperador Romano-Germânico), com a princesa bizantina Teofânia (neta do imperador Constantino Porfirogeneta), em 972, que no seu dote, trouxe magníficas jóias e artífices de esmaltes, contribuiu grandemente para a introdução desta arte no império germânico. O gosto tradicional da Europa pela arte da ourivesaria, veio reforçar a divulgação destes modelos.  Nesta época, surgem as escolas do Reno e Mosana, bem como outros focos de produção menos expressivos, que mantiveram, durante a época altimedieval, a técnica do cloisonné. Aos poucos, estes ateliers, substituíram o suporte das peças em ouro (que escasseava na Europa ocidental) pelo cobre, contribuindo para que se tornassem mais facilmente trabalháveis e economicamente mais acessíveis.

 

Pormenores da peça

 

 

A produção de Limoges nos séculos XII-XIII:

Apesar da existência de outras regiões com oficinas de esmaltes desde o início do século XII, associadas a grandes abadias e aos caminhos de peregrinações, a época áurea do trabalho champlevé, é conotada com as oficinas de Limoges. A cidade encontrava-se no coração de uma vasta rede de trocas religiosas, intelectuais, artísticas e comerciais – pois, situada no centro de França fazia parte de um dos caminhos de peregrinação para Santiago de Compostela, a “Via Lemovicense”, bem como para o santuário de Conques e para Roma, o que foi primordial para a divulgação da arte dos esmaltes que encontrava nos mosteiros os seus principais encomendadores e nos peregrinos o seu público difusor pela Europa. Surgem aqui muitos ateliers e o trabalho atinge grande mestria e sucesso, levando a que, nas últimas décadas do século XII e no século XIII as encomendas ultrapassem o âmbito dos mosteiros, passando a haver igualmente, um mercado laico. Pode-se então falar, de uma produção em massa em paralelo com peças eruditas para os grandes encomendadores religiosos e reais, num fenómeno que parece ter sido um dos primeiros casos de ‘industrialização’, na Europa.

 

A intensa procura levou à grande variedade tipológica: relicários, retábulos, altares, cálices, cibórios, píxides, ostensórios, báculos, pombas eucaríticas, capas de livros sagrados, vários tipos de cruzes – de altar, processionais e relicárias – e mesmo estatuetas e jacentes. No foro quotidiano, faziam-se cofres, jóias, fíbulas, medalhões, candelabros e placas decorativas. Pelas suas cores vibrantes, os pedaços de esmalte, imitavam pedras preciosas emprestando riqueza às peças que por vezes eram ainda decoradas com pedras preciosas ou vidros coloridos. A massificação resultante do sucesso, traduziu-se na estagnação e repetição dos modelos bem como na produção de simples figuras de aplique com apontamentos em esmaltes – como é o caso da peça em análise.  A partir de meados do século XIII, as peças começam a refletir as opções estéticas – de cariz naturalista -, da arte gótica, tendo esta época preferido a utilização da prata e dos esmaltes translúcidos.

 

Os temas decorativos desta produção são maioritariamente retirados do imaginário religioso, tendo como grande fonte de inspiração as iluminuras; a decoração é feita com ajuda de elementos vegetalistas, geométricos e zoomórficos estilizados tão ao gosto da estética românica. À imagem do que acontece nos vitrais e nas iluminuras, o azul é a cor predominante.

 

De ‘Signum’ a ‘Imago Crucifixi’ (de cruz a crucifixo): 

A Crucificação teve um tratamento diferente ao longo dos tempos; nos primeiros séculos, o sacrifício máximo de Cristo, foi somente invocado através de simbologia com a utilização desde as catacumbas do ‘Agnus Dei’. A Europa da Alta Idade Média, era relutante em apresentar aos fiéis um Cristo sofredor de uma morte indigna, pregado na cruz, como um vulgar ladrão. Com o tempo a Igreja promove a ideia da humanidade de Cristo e o sacrifício da cruz perde o carácter infame com Cristo a ser representado na sua forma humana, pregado à cruz e perdendo o carácter de juiz e castigador. Após o ano mil o ocidente medieval generaliza a figuração de Cristo na cruz, assistindo-se à transformação definitiva da cruz – o   – em crucifixo – ‘imago crucifixi’.

 

Iconografia – de vivo a morto:

“…on l’a representé successivement par des symboles, vivant et enfin mort.“(Louis Réau, p.475).

As primeiras imagens de Cristo crucificado representam-no vivo, mesmo sorridente e coroado como rei numa atitude face à morte, não de dor, mas de serenidade e majestade, sem dramatismos; esta tradição durou até meados do século XI. A partir dos finais do século XI, inícios do século XII, ousa-se finalmente, figurar Cristo morto, numa composição de maior intensidade emocional; os olhos fechados, a cabeça ostentando a coroa de espinhos e pendendo para o lado direito ou sendo projetada para a frente e inclinada para baixo, o corpo requebrado e descaído numa atitude mais real e os pregos nas mãos e pés (primeiro em separado, depois juntos).

 

O Crucifixo, análise formal:

Na peça da coleção, em cobre com vestígios de douramento e aplicação de esmaltes em champlevé, Cristo é figurado com o rosto ovalado e os olhos muito abertos, sendo as pupilas sugeridas por dois pedaços que parecem ser vidro azulado, do qual só restam vestígios. O cabelo com sugestão de ondulados por meio de finos incisos, é comprido, caindo sobre os ombros, a barba e o bigode longos, emolduram o rosto, afilado na zona do queixo denunciando a estética românica. Na cabeça, ereta, Cristo ostenta uma coroa real (não de espinhos), a coroa é decorada por um filete inciso e por pequenas folhas estilizadas que rodeiam seis orifícios onde as gemas foram substituídas por pedaços de esmalte azul-turquesa e brancos denunciando um processo mais económico. Os braços estão estendidos perpendicularmente ao corpo, sendo incisos com alguns traços que sugerem os músculos e as mãos, que estariam abertas, estão danificadas, tendo-se quebrado na zona perfurada para inserção dos pregos, pelo que os dedos são inexistentes (existem dois furos para suspensão da peça, feitos posteriormente).

 

Reverso

 

O corpo cai na perpendicular, sendo o torso bem desenhado, com trabalho de incisos que sugerem a anatomia desenhando os músculos do peito, as costelas e a definição da linha do abdómen, mas a modelação é ainda muito hierática. A zona do pescoço tem uma depressão que talvez possa indicar um plano original de incluir uma “gola” decorada, como acontece em peças semelhantes. As pernas estão lado a lado, fletidas e os pés, colocados lado a lado, apresentam um prego em cada lado – modelo que denuncia ainda certo arcaísmo. Apesar de se representarem os orifícios dos cravos, não são visíveis sinais das feridas infligidas a Cristo ou de sangue, o gosto vigente é, pois, ainda classicizante havendo alguma recusa de naturalismo. O cendal ou ‘perizonium’ inteiramente esmaltado a azul, utilizando a técnica de champlevé, transforma-se no motivo decorativo por excelência desta peça; um largo cinto debrua a parte superior caindo a direito, ao centro, até aos joelhos, o cinto – cujo modelo com pedraria lembra a tradição clássica bizantina e carolíngia – é orlado por um friso inciso e é decorado com pequenas folhas gravadas a cinzel, semelhantes às da coroa, que alternam com círculos onde se incrustam pedaços de esmalte, de terminação em meia esfera, para imitar o engaste de joias em esmalte branco e azul-turquesa, alternadamente. O cendal contribui igualmente para o sentido da humanidade de Cristo pois este já não aparece togado, qual imperador romano, mas quase nu e vulnerável, sem atributos de poder.

 

A peça como se apresenta hoje, está deslocada da sua função original; trata-se de um aplique para ser fixo numa obra representando a Crucificação; algum tipo de cruz – de altar, de procissão de relicário ou de suspensão -, uma placa de uma arca (tipologia de grande sucesso), uma capa de um evangeliário ou breviário, bem como uma placa decorativa de um altar, de um tabernáculo ou de um retábulo (hipótese menos provável, devido à sua tipologia corrente).

Conclui-se pois, que estamos na presença de uma obra de leitura rica, que encerra em si, várias tendências artísticas; as questões formais acusam ainda a herança Bizantina e Carolíngia (classicizante), a linguagem plástica é plenamente Românica mas, quanto à formulação estética, já se anuncia o ‘modo’ Gótico.

 

Proveniência

O arquivo do Museu não possui registo da compra desta peça. Terá sido provavelmente adquirida no mercado de antiguidades em Lisboa.

 

 

Maria de Lima Mayer

Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

Bibliografia:

ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de; BARROCA, Mário Jorge; História da Arte em Portugal – O Românico, Lisboa : 2002

MARGERIE, Anne de ; POSSELLE, Laurence ; L’oeuvre de Limoges : Émaux limousins du Moyen Âge, Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1995 (Catálogo de exposição)

RÉAU, Louis ; Iconographie de l’Art Chrétien, 3 vols., Paris : Presses Universitaires de France, 1955-1959 (dicionário)

TOUSSAINT, Jacques ; Émaux de Limoges XIIe – XIXe siècle, Musée des Arts Anciens du Namourois, Namour : 1996 (Catálogo de exposição)

Autor


Oficinas Limoges

Data

início/meados séc. XIII

Local

França, Limoges

Materiais

Cobre, esmaltes polícromos, pedraria e vidro


Dimensões

Alt.: 20,02 cm. / Larg.: 13,50 cm.

Category
Destaque