Contador com relógio – Destaque em Janeiro 2021

PEÇA EM DESTAQUE CMMA – Janeiro 2021

 

Contador com relógio

Johann Andreas Thelot(?) – (1655-1734) et al.

Augsburgo, Alemanha, c. 1700 – 1710

Madeira de carvalho(?) folheada a tartaruga, prata dourada cinzelada, ébano, tília, lápis-lazúli, bronze

Dims.: Alt.:55 cm x Larg.:42 cm x Prof.:26cm

 

 

Na Sala dos Relógios da Casa-Museu destaca-se, em vitrina própria, um pequeno contador encimado por relógio, uma peça digna de um gabinete de curiosidades.

 

Curiosos contadores, gabinetes de curiosidades

Os contadores móveis de conter podem ser aproximados de forma miniaturizada, aos gabinetes de curiosidades espaços onde as elites conservavam e expunham curiosas raridades. Impulsionados pelas viagens através do mundo e pelo pensamento científico, da Europa do Renascimento, a chegada ao Velho Continente de materiais até então desconhecidos ou raríssimos, permitiram a concepção de objectos nunca antes vistos, um fascínio para as elites que lhes podiam aceder, criando e desenvolvendo um espírito coleccionista e de fantasia preservados nestes espaços específicos, onde podiam ser admirados sob espanto pelos seus proprietários e convidados. Da geologia à arqueologia, passando pela história natural e pintura, tudo (ou quase tudo) cabia no gabinete de curiosidades, que se torna no percursor do museu.

O contador peça de mobiliário destinada a conter, torna-se por si só um gabinete de curiosidades dados os seu inúmeros compartimentos que permitiam guardar com zelo, preciosidades. Destinados a guardarem objectos de valor que tanto podiam ser colecções de peças que o seu proprietário apreciava ou itens de materiais que pela sua escassez e beleza eram considerados raridades, como conchas, gemas, marfins, ovos de pássaros exóticos… sendo por isso, acondicionados em estojos, vitrines, caixas ou contadores. Não raras vezes, possuíam no seu requintado interior, compartimentos secretos, segredos, disfarçados por fundos ou gavetas falsas, que continham o mais precioso. Em geral, o próprio contador era por si só um objecto precioso tanto pelos materiais usados na sua execução como na decoração requintada que exibia.

Em determinados casos, estas peças podiam ter outras funções e guardar documentos, dinheiro…podendo ainda destinar-se a refinados objectos de uso quotidiano como peças para toilette, de costura, de escrita…Por vezes, podiam ainda integrar um relógio passando a assumir uma outra função: medição do tempo.

A análise dos contadores dá-nos uma perspectiva dos gostos, riqueza, interesses, educação e busca do conhecimento dos seus donos, (in Augsburg Art Cabinet, Urban Josefsson, 2014) através das suas colecções ou objectos quotidianos cuidadosamente preservados no seu interior. Infelizmente, esta perspectiva é raríssima conhecendo-se poucos casos em que todo o recheio conseguiu sobreviver: o contador Gustaviano, hoje parte das colecções do museu da universidade de Uppsala, é um deles. Pode conhecê-lo aqui:

Museu de Uppsala, Suécia – Contador Gustaviano, https://gustavianum.uu.se/collections/art-collections/exhibitions/the-augsburg-art-cabinet/

 

Augsburgo – centro de ourivesaria

A região de Augsburgo no sul da (actual) Alemanha distingue-se a partir do século XVI como centro produtor de objectos de grande refinamento (em particular de ourivesaria) tanto pela sua estética como, pela esmerada execução e associação de materiais empregues o que tornou os trabalhos criados nesta cidade famosos. Espelhos, contadores, relógios, altares, relicários, estojos, autómatos… feitos numa associação de materiais ricos como casca de tartaruga, madrepérola, madeiras exóticas, pedras duras, prata, ouro, gemas, marfim …  tornaram-se um ex-libris desta região.

Era comum a execução de pequenos contadores ou prunkkabinett como são designados em alemão, cruzar o trabalho de diversos artesãos (marceneiros, ourives, miniaturistas, relojoeiros), cada um com a sua especialidade, sendo o trabalho subcontratado pelo artista a quem o mesmo tinha sido comissionado e que depois deveria proceder à montagem das diferentes peças. Este tipo de artesão tinha uma designação específica: Silberschreiner ou Silberkistler – carpinteiro de prata. A execução das peças era feita em madeira que depois era folheada com madeiras exóticas, casca de tartaruga (aspecto em que a cidade se distinguiu como um dos principais centros europeus) marfim ou finas placas de prata cinzelada, sendo pouco comum o uso de prata maciça.

A produção de Augsburgo caracterizou-se também, pela transposição para objectos de escala reduzida como contadores, das formas arquitetónicas barrocas de origem romana, através do uso de colunas e pilastras clássicas, formas triangulares, degraus. Em geral, a decoração elaborada, associa os materiais já referidos, com esquemas decorativos complexos de enrolamentos, folhagem, pássaros, flores, personagens mitológicas, sendo frequente a escolha de histórias de amor entre os deuses como temática decorativa.

Alguns destes ourives, marceneiros e relojoeiros assinaram os seus trabalhos, como por exemplonn Valentin Gevers (c.1662-1732), Johann Andreas Thelot (1655-1734), Tobias Baur (c. 1660-1735, mestre em 1685), Elias Adam (1669-1745, mestre em 1703), Ferdinand Plitzner Eyrischof (1678-1724) ou ainda, Heinrich Eichler (1637-1719), permitindo assim, um conhecimento mais aprofundado deste tipo de produção.

 

Contador da Casa-Museu

Datado aproximadamente de 1700, o contador da Casa-Museu é constituído por três partes: base, corpo central e topo, em madeira carvalho (?) folheada a tartaruga, decorada por enrolamentos e lâminas de prata dourada (a aplicação de lâminas e de enrolamentos de prata cinzelada sobre o esqueleto dos móveis, era uma prática característica de Augsburgo).

A base sob a qual se esconde um espelho, assenta em quatro pés em forma de esfera, tendo na parte superior uma gaveta, características que indiciam que poderá também ter contido objetos de toilette, que não terão resistido à passagem do tempo. O corpo central fechado por duas portas, possui no interior oito gavetas, organizadas em dois corpos de quatro, separados por coluna coríntia em lápis-lazúli, decorada por enrolamentos. As portas numa prática comum a Augsburgo, apresentam no exterior medalhões de ouro com figuração mitológica e no interior placas pintadas com cenas mitológicas: Atena na Grécia ou Minerva em Roma e Aquiles (?) e na outra a representação, Hera (Juno) e Eco.

Os medalhões no exterior das portas representam Zeus e Hera de um lado, e Afrodite com Eros do outro.

O topo em forma de frontão (no qual se insere relógio circular dourado, “sustentado” por figura que representa o Atlas (?), rematado por baldaquino de onde pende panejamento, sustentado por dois putti. Aplicações de lâminas de prata cinzelada sobre o esqueleto de madeira, na parte de trás do móvel.

 

A decoração mitológica, como atrás referido, recorria amiúde a deuses relacionados com o amor, tal como neste caso: Hera (Juno na mitologia romana) era casada com o seu irmão Zeus (Júpiter em Roma) rainha dos céus, deusa do casamento, família, casa, tem como atributo um pavão (os olhos de Argus foram transferidos pela deusa para a cauda do pavão) e uma coroa, podendo ser também representada com uma romã na mão. Inúmeras vezes enganada por Zeus tornou-se vingativa castigando os amores do marido. Zeus deus dos céus e do tempo é representado com barba, em idade madura, sendo a águia e um raio os seus atributos. Afrodite na Grécia ou Vénus em Roma, deusa do amor e da beleza, mas também adorada como deusa dos mares. Simbolizada através da romã, pomba, murta e cisne surge nesta representação junto a um vaso de plantas floridas (murta?), com dois pássaros a esvoaçarem (pombas?) e com o seu filho Eros, alado que segura um arco com o qual dispara as setas do amor.

As placas do interior, também figuram representações mitológicas, de um lado Hera e a ninfa Eco, que tantas vezes distraiu a deusa com a sua voz, para que esta não reparasse nos outros amores de Zeus, do outro, a deusa da guerra Atena (Minerva) representada com um elmo na cabeça e um escudo. Protectora dos heróis, Atena podia auxiliar qualquer um que lhe pedisse ajuda, como parece ser o caso nesta representação que poderá figurar Cadmo, que venceu o dragão com a ajuda de Atena e fundou nesse local a cidade de Tebas.

Conhecem-se os nomes de vários ourives e marceneiros que trabalharam individualmente ou associados tendo produzido peças que podem ser aproximadas a este contador, cujo autor(es) desconhecemos visto esta não estar marcada ou assinada.

É o caso de Johann Andreas Thelot ourives e gravador, nascido em Augsburgo, filho de ourives, cuja família era de origem francesa da cidade de Dijon e tinha fugido de França após o Édito de Nantes (1598). Adquiriu fama através das suas placas em prata de representação pictural, que podemos aproximar estilisticamente às que decoram o exterior destas portas. Pode conhecer alguns dos seus trabalhos aqui:

Museu Metropolitano de Nova Iorque (E.U.A.) – Espelho, c.1700, Johann Valentin Gevershttps://www.metmuseum.org/art/collection/search/207785

 

Instituto de Artes de Detroit (E.U.A.) – Cofre, c. 1700-1710, atribuído a J.A. Thelot e J.V. Gevershttps://www.dia.org/art/collection/object/jewel-casket-94972

 

No entanto, podemos analisar a peça também a partir dos materiais que a constituem como o ébano, a tartaruga, a prata, o ouro, o lápis-lazúli, tudo materiais raros e caros. Por outro lado, a cuidadosa decoração, tanto de interior como de exterior, mostram-nos que esta era uma peça que estaria em lugar de destaque em casa do seu proprietário, bastando para tal, olhar para o relógio que o integra e que por si só, constitui um objecto precioso para a época. Não estaria necessariamente junto a uma parede, dado o cuidado colocado no folheado e decoração a prata do seu tardoz, podendo por isso, ser apreciada a partir de qualquer ângulo.

 

 

Excepcionalmente, este contador não segue o modelo habitual em Augsburg de pés em enrolamento, apresentando em vez disso, esferas achatadas em madeira com a parte inferior dourada e a superior revestida também a prata dourada.

Proveniência

O contador foi anunciado na revista “Country Life” de 30 de Setembro de 197, pelo antiquário Stodel Embden Gallery de Londres. Tendo visto o anúncio, Medeiros e Almeida inquiriu o vendedor sobre a peça, tendo vindo a adquiri-la em outubro desse ano (Jacob Stodel Antiques, 172 Brompton Road), por 2,000£.

De acordo com informação do vendedor, a peça terá pertencido a uma das coleções da família Rothschild (não especificado qual o ramo – investigação ainda em curso).

 

 

NOTA: A Casa-Museu Medeiros e Almeida agradece à Dra. Christine Kuhne e à Dra. Martina Minning (3Landesmuseen Braunschweig, Alemanha) a disponibilização de informação específica sobre esta tipologia de peça.

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

Cristina Carvalho

Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

 

 

Bibliografia

Burlington Magazine, vol. 86, nº 506, Maio 1945 – pp. 121-125

EMMENDORFFER, Christoph e TREPSCH, Christof – Wunder Welt der Pommersch Kunstschrank. Maximilianmuseum, Berlin,Deutscher Kunstverlag, 2014

JOSEFSSON, Urban – Augsburg Art Cabinet, Ed. Annie Burman 2014

KOWALSKI, Christine – Die Augsburger Prunkkabinette mit Uhr von Heinrich Eichler D.A. (1637-1719) und seiner Werkstatt (Neue Forschungen zür Deutschen Kunst), Deutscher Verlag für Kunstwissenschaft, 2011

RIEDER, William P. – An Eighteenth-Century Augsburg Cabinet. Burlington Magazine, vol.112, nº 802, Jan. 1970 – pp.33-37

Webgrafia

BOWRY, Stephanie – Thinking inside the box: the construction of knowledge in a miniature seventeenth-century cabinethttps://www.matteringpress.org/books/boxes/read/boxes-figs-19.xhtml

Instituto de  Artes de Detroit, E.U.A. – https://www.dia.org/art/collection/object/jewel-casket-94972

Museu da Universidade de Uppsala, Suécia – https://www.gustavianum.uu.se/collections/art-collection/exhibitions/the-augsburg-art-cabinet/

Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia –

https://www.hermitagemuseum.org/wps/portal/hermitage/digital-collection/08.+applied+arts/174304

Museu Metropolitano, Nova Iorque, E.U.A. –

https://www.metmuseum.org/art/collection/search/207785?searchField=All&sortBy=Relevance&ft=Johann+Andreas+Thelot&offset=0&rpp=20&pos=1

 

Autor

Johann Andreas Thelot (?)-(1655-1734) et al.

Data

c. 1700 – 1710

Local, País

Augsburgo, Alemanha

Materiais

Madeira de carvalho(?) folheada a casca de tartaruga, prata dourada cinzelada, ébano, tília, lápis-lazúli, bronze

Dimensões

Alt.: 55cm x Larg.: 42cm x Prof.: 26cm 

Category
Destaque