Manufactura Real de Gobelins(?) / Manufactura Real de Beauvais(?)
Desenho de Charles Le Brun (1619-1690)
França, séc. XVII – final
Tapeçaria de baixo liço em fio de lã
265 x 425 cm
Naquela que foi a sala projetada por Medeiros e Almeida para ser a entrada do seu museu mas que veio a integrar o percurso museológico por razões relacionadas com o discurso expositivo, destacam-se duas tapeçarias, sendo uma de produção flamenga – O Triunfo de Baco – e outra produzida numa manufatura francesa em finais do século XVII.
De Gobelins a Beauvais: manufaturas tapeceiras no século XVII
A política económica francesa ao longo do século XVII pauta-se por diversas tentativas de reduzir a dependência de produtos importados, promovendo a sua produção em território nacional. É neste contexto que surgem duas das mais célebres manufaturas têxteis francesas: Gobelins e Beauvais.
No século XV, Jean Gobelin, membro de uma família de tintureiros, funda uma tinturaria dedicada ao tingimento de lãs, que alcança grande sucesso. As suas instalações em Paris são, no século XVII, alugadas por Henrique IV (1553-1610), a conselho do seu superintendente das finanças, o duque de Sully (1560-1641), para instalar oficinas tapeceiras, com o intuito de substituir produtos importados. Para tal, são chamados dois mestres tapeceiros flamengos que se instalam na cidade, produzindo e transmitindo simultaneamente a arte da tapeçaria aos artesãos franceses.
Em 1662, Colbert adquire estas instalações para a Coroa, integrando-as num projeto mais vasto: as Manufaturas Reais dos Móveis da Coroa (Gobelins), onde são agregadas outras artes e ofícios, como ourives, ebanistas, pintores, fundidores e gravadores, provenientes de ateliers dispersos por Paris e agora concentrados num mesmo espaço, todos sob a orientação do primeiro diretor artístico, Charles Le Brun.
Sob a sua direção, a manufatura conhece um período de cerca de trinta anos de grande desenvolvimento, produzindo inúmeras séries de tapeçarias, entre as quais se destacam Os Elementos, As Forjas de Vulcano, As Estações, A História de Alexandre e A História do Rei (Luís XIV), com episódios do seu reinado.
Le Brun realiza também séries a partir de desenhos de outros artistas, como Giulio Romano (História de Constantino) ou Rafael (Atos dos Apóstolos). Durante este período, as manufaturas produzem aproximadamente 775 peças. Até 1826, a produção realiza-se tanto em alto como em baixo liço; a partir dessa data, passa a concentrar-se exclusivamente no alto liço.
Quase em simultâneo, é criada a manufatura de Beauvais. A escolha desta cidade não é aleatória: Beauvais já possuía tradição na produção têxtil, nomeadamente de estofos e rendas, e encontrava-se estrategicamente situada na rota comercial da Flandres, de onde continuavam a chegar produtos têxteis.
Por esse motivo, Colbert opta por instalar aí a nova manufatura. Embora, em princípio, Gobelins devesse destinar-se exclusivamente a encomendas reais e Beauvais a clientes privados, com o passar do tempo Beauvais produz também em grandes quantidades para a Casa Real.
Para diretor de Beauvais é escolhido Louis Hinart (?-1697), marchand-tapissier originário de Beauvais, que então possuía teares na cidade de Audenarde. Hinart emprega artesãos flamengos e franceses, responsáveis por ensinar e elevar o nível técnico da manufatura, garantindo a qualidade necessária para reduzir a dependência das importações do Norte.
Os artesãos flamengos que se fixassem em França poderiam obter a cidadania ao fim de oito anos, sendo que Hinart recebia um prémio por cada operário que permanecesse no país.
Em 1684, Philippe Béhagle (1641-1705), flamengo originário de Audenarde, assume a direção de Beauvais, dando origem a um dos períodos mais profícuos desta manufatura. Béhagle introduz novas armações e uma criatividade artística reforçada por uma rede de mestres tapeceiros e pintores provenientes da Flandres, elevando qualitativa e quantitativamente a produção e consolidando Beauvais como referência no panorama europeu de tapeçaria.
Charles Le Brun
Charles Le Brun (1619-1690) é o autor do motivo da tapeçaria As Forjas de Vulcano ou O Fogo. Desde a infância demonstra talento para a arte, em particular para a pintura e o desenho, chegando a ser nomeado como Primeiro Pintor do rei Luís XIV. A sua aprendizagem inicia-se sob a orientação de Simon Vouet (1590-1649), pintor barroco de contrastes luminosos, formado em Itália e Primeiro Pintor de Luís XIII. A formação de Le Brun é consolidada com uma estadia em Itália, acompanhado por Nicolas Poussin (1594-1665), pintor classicista de renome.
Ao longo da sua carreira, fruto de uma aprendizagem eclética, Le Brun produz diversos géneros de pintura: histórica, mitológica, alegórica, paisagística e, na fase final da vida, pintura de cavalete. A sua criatividade e formação permitiram-lhe obter encomendas de destaque, nomeadamente de Nicolas Fouquet (1615-1680), superintendente das finanças do Cardeal Mazzarin, para a decoração do palácio de Vaux-le-Vicomte, e, posteriormente, para a Galeria de Apolo no Louvre, assim como programas decorativos para diversos espaços de Versailles.
Em 1664, Le Brun assume a direcção artística das Manufaturas de Gobelins, desenhando inúmeras séries de cartões para tapeçaria e coordenando artesãos de diferentes especialidades. A sua intervenção garante a excelência estética e artística das produções, projetando nacional e internacionalmente o prestígio das manufaturas. Membro fundador da Academia de Pintura e Escultura, perde, após a morte de Colbert, alguma influência nas encomendas reais, mantendo-se, no entanto, como figura central no panorama artístico francês.
O trabalho de Le Brun é realizado em estreita colaboração com numerosos artistas: pintores que adaptam os seus desenhos à escala de tapeçaria, gravadores que reproduzem os motivos em chapas metálicas prolongando a durabilidade das imagens, mestres tecelões que coordenam a execução das tapeçarias, e escultores e estucadores responsáveis pela transposição de modelos para paredes e tetos.
Entre estes colaboradores destaca-se Sébastien Leclerc (1637-1714), exímio desenhador e gravador, filho de um ourives que lhe transmite o domínio do desenho e da gravura. Dotado de uma profunda compreensão da geometria e da perspetiva, Leclerc produz gravuras de elevada qualidade desde a sua infância. Em 1665, conhece Charles Le Brun, que reconhece o seu talento e o incentiva a dedicar-se plenamente à gravura. Colbert integra Leclerc na Manufatura de Gobelins, onde este é posteriormente nomeado professor por Luís XIV, integrando também o Real Gabinete de Gravadores. Paralelamente, Leclerc assume a função de professor de perspetiva na Academia de Pintura durante trinta anos, consolidando a sua reputação como artista e pedagogo.
Autor de mais de 4 000 estampas e obras de geometria, Sébastien Leclerc é o gravador a água-forte e buril (editada em 1670) dos desenhos de Charles Le Brun que servem de base à tapeçaria do Museu.
O Fogo / As Forjas de Vulcano
A temática dos Quatro Elementos é extremamente popular ao longo do Barroco e frequentemente representada iconograficamente por cenas da mitologia clássica. Na série em análise, cada elemento é transposto para a tapeçaria através do tema referente ao deus ferreiro, As Forjas de Vulcano.
A armação dos Quatro Elementos é produzida pela primeira vez (juntamente com a das Quatro Estações) especificamente para a Manufatura de Gobelins, a partir de desenhos de Charles Le Brun datados de 1664. Jacques Bailly (1629-1679) é responsável por pintar e gravar as miniaturas para as cercaduras, incluindo as respetivas divisas das duas armações. A série é composta por quatro tapeçarias, cada uma dedicada a um elemento, acompanhadas por quatro entre-janelas. Executada oito vezes em Gobelins entre 1666 e 1719, ambas as armações visam exaltar as virtudes do rei num discurso panegírico, conforme o texto de Charles Perrault na obra Divises pour les Tapisseries du Roy, où sont représentés les Quatres Élements et les Quatre Saisons de l’année (séc. XVII):
“O desenho desta tapeçaria [tendo como objetivo] louvar o rei por ter dado a paz aos seus povos; cremos que, tendo representado nos quadros centrais os grandes efeitos que devemos esperar, e a renovação que deverá produzir nos elementos, este seria um ornamento conveniente para colocar nas cercaduras destas tapeçarias as divisas que louvem sua Majestade pelas virtudes principais que brilham na sua augusta pessoa e que, acima de todas as outras, contribuíram para a grande obra da Paz: a PIEDADE, a MAGNANIMIDADE, a BONDADE e o VALOR.” (tradução da autora)
A tapeçaria representa Vulcano ao centro, trabalhando numa bigorna, acompanhado pelos Ciclopes, seus ajudantes. Virado para trás, olha para o céu, onde se situam Júpiter e Vénus entre as nuvens. André Félibien, crítico de arte, descreve a composição da seguinte forma:
“No meio de uma paisagem obscurecida pelas nuvens, Vulcano e os Ciclopes, em frente a uma caverna à esquerda, forjam diversos instrumentos e armas. À direita, um canhão e um troféu de armaduras. Ao fundo, à direita, o monte Etna em erupção. Por cima de Vulcano, Júpiter, sentado sobre as nuvens, segura um escudo com o monograma do rei. Vénus está ao seu lado, com a águia aos pés.” (tradução da autora)
O monograma do rei é circundado pela inscrição “MAGIS IPSO FVLMINE TERRET”. A cercadura de fundo laranja contém numerosos objetos — armas, utensílios e vasos preciosos — divididos pelas armas do rei entre duas salamandras. Ao centro de cada montante, à direita, observa-se o quadro da Pirâmide elevada em Roma para satisfazer a afronta feita ao embaixador de França; à esquerda, a vista de Marsal (Mosela). Na parte inferior, uma cartela apresenta a seguinte inscrição:
“LVDOVIVS XIII POTENTISSIMVS REGLAEDIGNITATIS
CVSTOS ET VINDEX POSTQVAM IGNI VIM INIMICAM
ERIPVIT, TVM SOLA FULMINIS MINITNANTIS
CORVSCATIONE ET MARSALII FIRMISSIMAM ARSEM
EXPVGNAVIT ET VIOLATAM APVD ROMANOS
IN LEGATO MAJESTATEM ASSERVIT”
(“Luís XIII, o mais poderoso, guardião e defensor da dignidade régia, depois de ter arrebatado com fogo a força inimiga, então, apenas com o fulgor ameaçador do raio, conquistou a mais firme fortificação de Marselha e, violada, preservou a majestade perante os romanos através do legado.”) (tradução da autora)
Nos quatro cantos da cercadura, medalhões redondos apresentam as divisas das virtudes do rei: Piedade, Magnanimidade, Bondade e Valor, simbolizadas por um incensório, um foguete, um farol e um raio a abater uma árvore, respetivamente.
Vulcano, filho de Júpiter e Juno, marido de Vénus, é o deus romano do fogo, transposto do deus grego Hefesto, filho de Zeus e Hera. Deus dos vulcões, das forjas, dos ferreiros, dos metais e da metalurgia, possui como atributos tenazes, martelo e bigorna. Tradicionalmente, Vulcano é representado como uma figura pouco elegante ou com incapacidade física, cabelo desgrenhado, semidespido e coxo, trabalhando junto à forja, situada no sopé do Etna. É responsável pela confeção das armas e apetrechos usados pelos deuses, incluindo as asas de Hermes, o elmo de Atena, o arco e flecha de Eros, o tridente de Posídeon, as flechas de Apolo e a armadura de Aquiles, sendo também autor dos tronos do Olimpo.
A sua incapacidade física resulta de uma queda após a sua expulsão do Olimpo, seja por Hera, que percebeu a sua fealdade, seja por Zeus, por ter tomado partido da mãe numa disputa. Recolhido e educado por Tétis no fundo do oceano, Hefesto mais tarde vinga-se oferecendo a Hera um trono dourado que a prende, libertando-a apenas sob mediação de Dioniso. Apaixona-se por Afrodite (Vénus), mas é traído por Ares (Marte), situação que remete para a narrativa mitológica da rede lançada sobre os amantes e a exposição do ridículo perante os deuses.
Júpiter (Zeus), deus do Olimpo e dos trovões, é representado por Le Brun com o escudo com o monograma do rei e a águia. Afrodite (Vénus), que também se envolve com Anquises, surge acompanhada do filho Eneias, futuro herói da Eneida de Virgílio, considerado antepassado de Rómulo e Remo, fundadores de Roma.
A Tapeçaria do Museu
A tapeçaria do Museu segue claramente o modelo produzido por Charles Le Brun, apresentando, no entanto, algumas alterações em relação ao original.
A transposição para tapeçaria encontra-se invertida em relação ao desenho inicial, o que indica que se trata de uma peça tecida em baixo-liço. Por outro lado, a tapeçaria não reproduz integralmente o motivo, encontrando-se ausente uma parte do desenho original, que incluía um troféu composto por armadura com elmo, vários escudos e lanças junto a um canhão. A cercadura difere significativamente da concebida por Jacques Bailly para esta armação, que incorporava as divisas e virtudes do rei Luís XIV, assim como vistas inseridas numa panóplia de armas e uma cartela inferior com inscrições em latim. Na peça do Museu, a cercadura é composta por um entrelaçado de flores e fitas.
A Manufatura de Gobelins não foi a única a produzir a armação dos Elementos. Em 1690, os desenhos de Le Brun — tanto da tapeçaria como da cercadura — encontravam-se igualmente na posse do diretor artístico da Manufatura de Beauvais, Philippe Béhagle. Desta forma, algumas séries foram produzidas por Beauvais, incluindo uma assinada por Béhagle, embora com alterações nas cercaduras: as divisas e os medalhões redondos foram suprimidos, a cartela inferior passou a apresentar apenas o nome da tapeçaria e os medalhões dos cantos foram substituídos por rosáceas, mantendo-se as armas de França no topo. A Manufatura de Beauvais desenvolveu ainda outra variante da cercadura, com flores e fitas entrelaçadas, como se observa na tapeçaria do Museu.

As diversas séries produzidas por Gobelins encontram-se devidamente identificadas por Maurice Fenaille na sua obra État Général des Tapisseries de Gobelins, depuis son origine jusqu’à nos jours, 1600-1900, e nenhuma apresenta a cercadura observada na tapeçaria do Museu. Esta circunstância leva-nos a questionar a atribuição da peça a Gobelins, tal como foi registada aquando da sua aquisição. Tendo em conta a existência de peças produzidas por Beauvais com cercadura de flores e fitas, bem como o facto de a tapeçaria ter sido tecida em baixo-liço — técnica característica desta manufatura —, coloca-se a hipótese de que a peça do Museu tenha sido produzida pela Manufatura de Beauvais, e não por Gobelins, como se acreditava até então.
Proveniência
Segundo a documentação dos arquivos do Museu, esta tapeçaria foi adquirida ao antiquário Maurice Chalom (21, Place Vendôme, Paris) em julho de 1971, pelo valor de 117 000 FFR.

Entre as tapeçarias desta série produzidas pela Manufatura de Gobelins, destacamos as que hoje pertencem às coleções do Mobilier National, em França, com os títulos Le Feu (O Fogo), L’Eau (A Água), L’Air (O Ar) e La Terre (A Terra), e ainda a Personificazione del Fuoco, no Musei Reali di Torino.
Cristina Carvalho
Museu Medeiros e Almeida
Bibliografia
Boccara, Dario. Les belles heures de la tapisserie. Les chefs du temps. Milão: S.A., 1971. p. 119.
Fenaille, Maurice. État Général des Tapisseries de la Manufacture des Gobelins depuis son origine jusqu’à nous jours, 1600-1900. Vol. II. Paris: Librairie Hachette, 1906.
Göbel, Heinrich. Die Wandteppiche. Band II. Leipzig: 1928.
Guiffrey, Jules. Les Gobelins et Beauvais : les manufactures nationales de tapisserie. Paris: Librairie Renouard, H. Laurens éditeur, 1908.
Havard, Henry, e Marius Vachon. Les Manufactures Nationales. Les Gobelins, la Savonnerie Sèvres, Beauvais. Paris: Georges Decaux, Librairie Illustrée, 1889.
Perrault, Charles, Jacques Bailly, et al. Divises pour les Tapisseries du Roy, où sont représentés les Quatre Éléments et les Quatre Saisons de l’année. [s.l.], [s.d.].
Quignon, G. Hector. “La Manufacture Royale de Tapisseries de Beauvais, les ouvriers flamands et wallons de 1664 à 1715.” In Annales du XXIII Congrès de la Fédération Archéologique et Historique de Belgique, tome III. Gand: Imprimerie W. Siffer, 1914.
Reyniès, Nicole. “Les Lissiers flamands en France au XVIIe siècle et considérations sur leurs marques.” In Guy Delmarcel, Flemishe Tapestry Weavers Abroad: Emigration and the Founding of Manufactories in Europe, Proceedings of the International Conference, Mechelen, 2-3 October 2000, Leuven: Leuven University Press, 2002.
Webgrafia
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Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa. “Hefesto.” http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras/links/hefesto.htm.
Mobilier National. “Manufacture des Gobelins.” http://www.mobiliernational.culture.gouv.fr/fr/nous-connaitre/les-manufactures/manufacture-des-gobelins.
Manufactura Real de Gobelins(?) / Manufactura Real de Beauvais(?) Desenho: Charles Le Brun (1619-1690)
Final séc. XVII
França
Lã
Alt. 265cm x Comp. 425cm