Secretária com Cartonnier, 1892

Secretária com Cartonnier, 1892

Mesa-secretária com cartonnier, de tampo retangular terminando em semicírculo, forrado de cabedal verde-escuro e rematado por filete de bronze dourado em enrolamentos vegetalistas.

 

Num dos extremos ergue-se um módulo – o cartonnier propriamente dito – composto por duas colunas simétricas de quatro gavetas de tamanho decrescente, encimado por um pequeno relógio típico dos móveis de trabalho e rematado por um conjunto escultórico em bronze dourado formado por dois putti brincando com um cão. Os lados, de elegante desenho em ‘s’, são decorados com embutidos de madeiras de diferentes tonalidades formando um padrão floral bem como a parte traseira cujo cuidado decorativo denuncia um uso a toda a volta.

 

Para além do magnífico trabalho de marcenaria desta peça, destacam-se também os excelentes bronzes como as graciosas espagnolettes (figuras femininas) que decoram as pernas e os pés em patas de leão que, pela sua qualidade, e dado Zwiener na altura ainda estar a viver em Paris, poderiam ser da autoria do bronzista francês Léon Messagé (1842-1901) com quem costumava trabalhar, embora não exista nenhuma assinatura nem prova documental disto.

 

O mobiliário francês na segunda metade do século XIX:


Na segunda metade do século XIX a tradição na manufatura de mobiliário em França, assim como noutros campos, continuava muito ligada a uma das épocas mais esplendorosas das artes; o final do século XVII e inícios do século XVIII, nomeadamente aos estilos Luís XIV, Luís XV e, em menor medida, Luís XVI. O cenário social já não era, porém, o mesmo e, se no passado o gosto era ditado pela corte e imitado pelo povo, emergia agora com força a encomenda privada nomeadamente de uma burguesia endinheirada. Embora o mobiliário francês continuasse a ser o mais procurado na Europa, a Inglaterra e a Alemanha eram uma forte concorrência, começando a atrair não só clientes como também marceneiros, o que resultava numa constante fonte de influências.

 

Outra novidade na época eram os avanços técnicos utilizados nos próprios ateliers, fruto da rápida revolução industrial que chegava, de uma forma ou outra, a todos os sectores. A energia – primeiro a vapor e depois elétrica- viria permitir o uso de moderna maquinaria que abriria o caminho a novas possibilidades formais e estéticas, para além de agilizar a produção permitindo responder a uma crescente demanda.

 

A forma de comercializar as peças, também se modificou neste século; agora já não era o cliente que encomendava um determinado trabalho ao marceneiro, mas, muitas vezes, era este que criava uma série de obras que punha à disposição da clientela, fazendo aumentar o número de “pontos de venda”. Em certas ocasiões eram os próprios marceneiros que abriam locais de exposição em diferentes cidades, e noutras eram intermediários que compravam os móveis a variados ateliers para posterior venda.

 

Muitas das características acima referidas podem ser apreciadas com o estudo do fenómeno das Expositions Universelles da segunda metade do século XIX que pretendiam ser montras dos grandes avanços nas diversas áreas, incluindo a marcenaria. É nestas exposições que podemos contemplar o ecleticismo que, a partir das formas antigas – os referidos estilos Luís XIV e Luís XV – se desenvolveu criando novas tipologias que respondiam a uma clientela cada vez menos especializada. As exposições eram também uma inigualável montra para a angariação de nova clientela para os autores ali representados.

 

A secretária:

As secretárias são uma criação francesa do início do século XVIII, inspirada na tipologia das chamadas secretárias ‘Mazarinas’ de meados do século anterior, que evoluiu muito rapidamente para uma grande diversidade de formas adaptando-se aos diversos usos que foram tendo. Em francês este tipo de móveis recebe o nome de bureau que deriva do latim ‘burellum’ e que designa o tecido grosso com o que se cobriam as mesas para dispor os utensílios de escrita protegendo-as das nódoas de tinta, transformando-se depois na pele que, como no caso da secretária da Casa-Museu, forra os tampos.

 

O cartonnier da Casa-Museu:


Uma das derivações das secretárias iniciais foi a inclusão de um cartonnier, um módulo de gavetas, numa das extremidades do tampo. O cartonnier era inicialmente uma caixa de cartão com gavetas que era colocada sobre as secretárias, sendo utilizada para organizar papéis relacionados com a escrita. Com o tempo passou a ser feita em madeira, unindo-se, por vezes, à estrutura do tampo, tal como acontece no exemplar em estudo, ou funcionando como um módulo independente que se encostava às mesas como é o caso de outro exemplar da coleção.

 

Uma outra característica que faz desta secretária com cartonnier uma curiosa peça, é a existência de um ‘segredo’, facto comum nos móveis de senhora. Neste caso o “segredo” relaciona-se com o modo de abrir as gavetas do cartonnier que apresentam pegas e não têm fechadura. Na impossibilidade de abrir as gavetas do cartonnier puxando as pegas e, dado não existir nenhuma fechadura à vista, pareceria a quem não conhecesse o móvel, que este módulo era simplesmente decorativo. Porém, existe uma outra gaveta num dos lados cuja fechadura comanda um secreto sistema de fecho geral que funciona ligando à fechadura todas as gavetas através de uns fechos instalados na parte traseira. Ao rodar a chave desta gaveta, todas as outras são bloqueadas ou desbloqueadas.

 

O autor:

Nascido na Alemanha Herdon, em 1849, Joseph-Emmanuel Zwiener mudou-se para Paris, tal como era frequente entre os melhores ebanistas da época, tendo trabalhado na Rue de la Roquette nº12, entre 1880 e 1895 onde vem a falecer.

 

Zwiener trabalhou muito ligado ao estilo setecentista, nomeadamente à ‘maneira de Luís XV’, produzindo móveis de amplas curvas, com folheados, embutidos e painéis em vernis martin, embora, como era comum no século XIX, realizando as suas próprias interpretações.
Em 1889 o autor participa na Exposition Universelle de Paris que comemorava o 100º aniversário da tomada da Bastilha, recebendo uma medalha de ouro e um louvor: “dès ses débuts d’une Exposition universelle, il c’est mis au premier rang par la richesse, la hardiesse et le fini de ses meubles incrustés de bronzes et fort habilement marquetés.” (tradução livre da autora: desde os seus inícios nas exposições Universais ele elevou-se ao topo pela riqueza, ousadia e o acabamento dos seus móveis incrustados de bronze e muito habilmente marchetados).

 

Zwiener e François Linke (1855-1946), marceneiro da Boémia que se estabelece em Paris em 1878, são muitas vezes associados, sendo que não é descabido pensar que entre os “mestres alemães” existisse alguma ligação; Zwiener, seis anos mais velho, terá certamente empregado Linke nos seus primeiros tempos na capital francesa; os registos no Pankraz Gedenkbuch mencionam Linke”…a trabalhar em Paris com um mestre alemão”.

 

O facto de ambos terem trabalhado com o mesmo desenhador e bronzista – Léon Messagé (1842-1901) – pode explicar a existência de notáveis semelhanças entre as suas obras.

 

Nota:

A coleção da Casa-Museu Medeiros e Almeida integra dois exemplares da mão de F. Linke; um móvel de aparato e um relógio de caixa alta, em exposição permanente no Átrio.

 

Assinatura:

Zwiener, ao contrário de F. Linke, nem sempre assinava as suas peças, embora muitas estejam marcadas com diferentes versões da sua inicial.

 

A peça da Casa-Museu está assinada e datada na parte de trás do módulo de gavetas, com incisos cobertos a tinta sobre o folheado: Zwiener Paris 1892.

 

Existe um equívoco, ainda por esclarecer, entre as obras parisienses assinadas por Zwiener e o trabalho de um marceneiro, Julius Zwiener, a trabalhar em Berlim para o Kaiser após 1895. Atentando nas datas, pode-se pensar que se trata do mesmo marceneiro a trabalhar sob um nome diferente, ou, como sugere Christopher Payne na sua obra “19th Century European Furniture”, dada as semelhanças de estilo, poderia tratar-se de dois irmãos ou de membros da mesma família.

 

Proveniência:

A secretária foi adquirida por Medeiros e Almeida a 22 de setembro de 1967 à casa “Au Bonheur du Jour” situada no número 10 da Rue Chauchat em Paris. A casa, fundada em 1898 pela família Calvet, era especializada na compra e venda de mobiliário e arte dos séculos XVII, XVIII e XIX.

Samantha Coleman-Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida

Bibliografia:

PAYNE, Christopher; 19th Century European Furniture, Londres: Antique Collector’s Club, 1981

PEREIRA COUTINHO, Maria Isabel; Mobiliário francês do século XVIII, Lisboa : Museu Calouste Gulbenkian, 1999

SASSONE, Adriane Boid, trad. Pierling Locchi; Le mobilier français du XIXe siècle, Paris : Larousse, 1985

Artista

Joseph Emmanuel Zwiener (1849 - c.1900)

Ano

1892


País

França, Paris

Materiais

Carvalho, folheado a pau-santo e pau-rosa, pele tingida e bronze dourado

Dimensões

Alt. 164cm x Larg. 145cm

Category
Mobiliário Francês