Secretária com alçado

No escritório do Museu distingue-se um móvel de grandes proporções, de produção inglesa, de 1845-1852, que terá sido utilizado precisamente num escritório. Era neste espaço que o colecionador mantinha a sua biblioteca privada que recheava de publicações relacionadas com as diferentes tipologias dos objetos da sua coleção.

 

 

Secretária com alçado em mogno, madeira típica da produção inglesa. O corpo inferior é formado por dois módulos de quatro gavetas escondidas por trás de portas de trinco de palheta, unidos por um tampo. O alçado, encimado por elaborada cimalha entalhada e vazada, é composto por um corpo central constituído na parte superior por um armário de duas portas e parte inferior por módulo dividido em compartimentos, que se escondem por trás de um tampo de secretária rebatível. Os dois corpos laterais são fechados por portas forradas de espelho, contendo no seu interior compartimentos formados por estantes e duas gavetas, uma das quais – a gaveta superior do lado esquerdo do móvel – adaptada com pequenos compartimentos para guardar objetos. O móvel sofreu alterações de caráter prático provavelmente devido às funções administrativas que lhe foram atribuídas; no interior das portas do compartimento central do alçado encontra-se aparafusado um possível chaveiro (esquerda do móvel), e no lado direito foi montado um dispositivo de função desconhecida, formado por tiras de madeira que correm em calhas.

A parte inferior do corpo central divide-se em 20 compartimentos de dois tamanhos estando algumas divisórias identificadas na frente com etiquetas de papel ostentando inscrições.

 

História de uma secretária:

A secretária – de autor desconhecido mas claramente baseada nos desenhos de Thomas Chippendale – foi provavelmente uma encomenda para os escritórios de uma estação de caminhos-de-ferro da costa Este de Inglaterra.

Num dos compartimentos retangulares do módulo central inferior encontra-se uma pequena tira de papel onde se lê: ‘North Eastern Railway’ (NER), nome da companhia de caminhos-de-ferro inglesa a cujos escritórios o móvel pertenceria. É, pois, esta localização que explica algumas das características do móvel, como os referidos compartimentos do corpo central que serviriam para classificar a documentação relativa à companhia, nos quais, para além do nome da companhia, podem ainda distinguir-se outras etiquetas:

  • Bills for examination (faturas a examinar)
  • Bills to pay (faturas a pagar)
  • Loans (empréstimos)
  • Schools (escolas)
  • Servants (empregados)
  • Wage books (livros de salários)
  • Plans (planos)
  • Darlington (uma das estações principais da linha)
  • Nether Grange
  • Cluny Lodge

As duas etiquetas referidas em último são as mais complicadas de explicar, já que não fazem referência a funções administrativas ou a estações de combóio, como num primeiro momento se pensou, sendo que todos os outros podem perfeitamente estar relacionados com o funcionamento e a documentação habitual de uma empresa. A propriedade Nether Grange, situada na vila piscatória de Alnmouth (Northumberland), alberga atualmente um hotel rural (pertencente à companhia HF Holidays), sabendo-se que a estação local fazia parte da linha da NER; em tempos um moinho de farinha e celeiro nesta localização, o que poderia explicar o facto de o nome ser referido na secretária em estudo, já que na documentação da NER aparece referido em variadas ocasiões o transporte de sacas de farinha. Quanto a Cluny Lodge desconhece-se se tem algo a ver com um lar de idosos com o mesmo nome, situado perto da cidade de Edimburgo na Escócia, local de término da linha NER.

 

 

Para além deste módulo para a organização de documentação, tal como já referido, existem no interior das portas do módulo central modificações, claramente posteriores à manufatura do móvel, devidas ao uso particular deste. Na porta esquerda aparece aparafusada uma madeira com diversos ganchos que poderia ter funcionado em tempos como chaveiro. Na porta direita foi colocado um dispositivo de função desconhecida, formado por tiras de madeira, cada uma com um cordel na ponta, que correm numa calha podendo adotar três posições diferentes sendo que uma delas impede o fecho das portas – funcionaria como um lembrete?

 

Os fechos da secretária são da S. Mordan & Co., companhia de Sampson Mordan (1790-1843), prateiro e serralheiro inglês que para além de fechaduras e outros objetos em prata e ouro, inventou e patenteou em 1822, com John Isaac Hawkins (1772-1825), a lapiseira.

 

 

A NER – North Eastern Railway:

Em 1821, perante a necessidade de transportar o minério da região de Bishop Auckland, aprova-se a construção de uma linha que unia esta zona com o rio Tees em Stockton, passando por Darlington. Num primeiro momento pensou-se usar carruagens de metal puxadas por cavalos mas, com a colaboração do engenheiro George Stephenson (1781-1848), mudou-se esta ideia inicial e finalmente construiu-se uma linha para locomotoras a vapor. A Stockton & Darlington Railway inaugurou com grandes honras os seus 61 quilómetros de linha em 1825, com uma travessia muito acidentada que duraria 3 horas e 7 minutos e seria a primeira em que uma locomotora a vapor levou passageiros para além de carga. Esta primeira linha será nos anos 40 – época da que data a peça em destaque – incluída na North Eastern Railway (NER), companhia que por sua vez será, em 1923, reestruturada como London and North Eastern Railway, e da que ainda hoje em dia sobrevive o ramo principal na costa Este como parte da linha entre Londres e Edimburgo.

 

A NER cobria um território relativamente amplo, do qual teve um quase monopólio; este estendia-se através de Yorkshire, Durham County e Northumberland, com postos avançados em Westmorland e Cumberland. Como sucessora da Stockton & Darlington Railway, a NER tinha reputação de ser uma companhia inovadora; foi pioneira em matéria de design (desenhando algum do seu mobiliário como iluminárias ou assentos dos cais), arquitetura (sendo a primeira companhia ferroviária a contratar um arquiteto a tempo inteiro) e na eletrificação (uma das primeiras companhias ferroviárias inglesas a adoptar a tração elétrica). Começou também a coleção que mais tarde daria lugar ao Museu Ferroviário de York e que hoje em dia é o Museu Nacional Ferroviário (National Railway Museum).

 

Thomas Chippendale:

Thomas Chippendale (1718-1779) foi um marceneiro e designer de mobília inglês. Na sua família já havia tradição de trabalhar a madeira, e terá sido com o seu pai que ele se iniciou no ofício, mas é provável que antes de se mudar para Londres, onde irá estabelecer o seu negócio que se manteve até 1813 já com o seu filho à frente, tenha sido também aprendiz em outras oficinas.

Além de marceneiro Chippendale fez projetos de interiores, realizando numerosas encomendas para a aristocracia, algumas das quais ainda são identificáveis hoje em dia nas suas localizações originais, tendo colaborado também com os mais proeminentes arquitetos da altura, como Robert Adams e Sir William Chambers.

Atualmente, porém, o seu nome é mais reconhecido como sendo o primeiro marceneiro a publicar um livro dos seus desenhos; o famoso “The Gentelman & Cabinet Maker’s Director”, cuja primeira edição é de 1754, com uma reedição de 1755 e uma terceira edição, de 1762, revista e ampliada com novos desenhos correspondentes ao novo estilo – o Neoclássico.

 

 

Neste livro, que lhe valeria a fama como um dos mais célebres marceneiros do século XVIII, Chippendale faz uma compilação de desenhos que é considerada o reflexo dos diferentes estilos que estavam de moda na altura, com influências que vão desde o Rococó francês muito elaborado ao Neogótico, passando pelos móveis lacados de clara inspiração chinesa.

Muitos marceneiros da época usaram estes desenhos nas suas criações, podendo identificar-se produção de mobiliário, de direta influência em cidades tão distantes como Dublin, Copenhaga, Hamburgo, Lisboa ou Filadélfia sendo que até a imperatriz Catarina da Rússia e o rei Luís XVI possuíam cópias do ‘Director’ na edição francesa. Tão influentes chegaram a ser os seus desenhos que ainda na atualidade o termo “Chippendale” se tornou uma descrição abreviada para mobiliário baseado ou semelhante. Na segunda metade do século XIX a influência de Chippendale voltou com força, porém, por vezes já longe do conceito original – será esse o caso da secretária em análise.

 

Proveniência:

O móvel pertenceu à coleção do  Michael Levi (Esquire), Inglaterra tendo sido adquirida à casa Maple & Company International Ltd. (141-150, Tottenham Court Road), em Londres, a 10 de Maio de 1971, lote 98, por £2.000.

 

Samantha Coleman Aller
Casa-Museu Medeiros e Almeida

Autor

Desconhecido

Data

1845-1852

Local

Inglaterra

Materiais

Mogno, espelho e bronze


Dimensões

Alt. 261cm. x Larg. 173cm.

Category
Mobiliário Inglês