Revivalismo Vienense: um cofre de aparato – Destaque Fevereiro 2022

DESTAQUE FEVEREIRO 2022

Cofre de aparato

 

A Coleção Medeiros e Almeida possui um pequeno, mas importante grupo de peças historicistas vienenses de finais do século XIX. Entre estas, um delicado cofre em cristal de rocha gravado, com armação em prata enriquecida por esmaltes polícromos e lápis-lazúli, excelente exemplo do fascinante trabalho desenvolvido pelos ourives vienenses numa época de grande criatividade.

 

A Viena do século XIX e o revivalismo

Nas últimas décadas do século XVIII surgiram por toda a Europa movimentos de redescoberta e reinterpretação de estilos passados, tendência especialmente importante durante o século XIX em conexão com a ascensão da burguesia, fruto da Revolução Industrial, e com as novas correntes filosóficas e políticas de afirmação das identidades nacionais.

 

Viena, uma das cidades mais elegantes da Europa, atraiu desde o século XVIII ourives, joalheiros, esmaltadores, lapidadores e miniaturistas que contribuíram para a próspera produção de caixinhas de rapé e outros objets de vertu, pequenos objetos de luxo, particularmente peças de ourivesaria e esmalte, muito em voga na altura e cujo legado resultou na excecional qualidade técnica da produção historicista desenvolvida no século seguinte.

Após as revoluções nacionalistas de 1848, Viena entrou num período de relativa prosperidade como o centro administrativo e cultural do Império Habsburgo. Um acontecimento chave para o desenvolvimento da cidade – e do revivalismo vienense – foi o decreto emitido em 1857 pelo imperador Francisco José I (1830-1916), ordenando a demolição das obsoletas muralhas medievais e a construção de uma nova avenida, a Ringstrasse, cuja urbanização proporcionou a oportunidade para a construção das modernas infraestruturas indispensáveis a qualquer grande urbe (óperas, teatros, hotéis…). Estes novos edifícios, de eclética arquitetura – a grande maioria historicista – e cuidado interiorismo, afirmaram-se como símbolo da nova burguesia e do bom gosto, numa cidade onde a estética e a cultura eram parte inerente da classe.

 

Na segunda metade do século XIX, grandes oficinas de proeminentes ourives começaram a criar objetos de luxo de marcado caráter revivalista, visando tanto a crescente e cosmopolita clientela vienense quanto o mercado de exportação. Vários fatores levaram ao aparecimento deste tipo de peças: a longa história da indústria de artes decorativas em Viena; o chamado estilo Ringstrasse (que abrangia desde a arquitetura à decoração de interiores e a ourivesaria, numa prolongamento de formas, esquemas cromáticos e temáticas); o fascínio pelos gabinetes de curiosidades dos séculos XVI e XVII e o interesse por objetos do passado, especialmente peças renascentistas, que agora podiam ser estudadas nos novos museus e nas coleções Imperiais.

Este esplendor das artes decorativas vienenses coincide com o Império Austro-húngaro (1867 a 1918), período no qual se produziram extraordinários “objetos de exposição”, peças fundamentalmente decorativas que conjugavam um apurado design – muitas vezes de inspiração quinhentista -, o uso de variados e requintados materiais e uma admirável perícia na sua execução. Combinando o domínio vienense das técnicas de esmalte com o recuperado interesse pelo cristal de rocha e o trabalho das elaboradas armações de prata, prata dourada ou ouro, estes objetos alcançaram o seu auge nas décadas de 1870 e 1880 e continuaram a ser produzidos até o início do século XX, quando a linguagem neorrenascentista se confunde já com o vocabulário de cores fortes e linhas ondulantes da Secessão vienense.

 

A extraordinária habilidade dos artesãos a trabalhar em Viena – como Hermann Ratzersdorfer (1817-1894) ou Hermann Boehm/Böhm (at. 1866-1922), entre outros – fez com que muitas vezes as suas criações superassem os modelos antigos nos quais procuravam inspiração e, ao contrário do que acontecia noutros países, embora a estética geral continuasse a ser revivalista, não se limitassem a produzir imitações, mas sim a gerar verdadeiras peças oitocentistas que apresentavam orgulhosamente nas Exposições Internacionais.

 

 

O cofre de aparato da coleção Medeiros e Almeida

Este delicado cofre de aparato pertencente à coleção Medeiros e Almeida é constituído por 51 placas de cristal de rocha lapidado e gravado, montadas em armação oitavada de prata e prata dourada enriquecida por esmaltes polícromos e placas de lápis-lazúli. A parte superior da tampa, de laterais abaulados, ostenta uma segunda abertura, também oitavada. Na base, quatro atlantes alados, ajoelhados, ostentando grinaldas, sustentam o conjunto.

Cofres semelhantes a este, construídos em materiais nobres, foram produzidos em Veneza durante a segunda metade do século XVI e princípios do XVII. A transparência do cristal de rocha permitia ver os objetos contidos no seu interior, que podiam ser joias, peças de ourivesaria, relíquias ou outro tipo de “tesouros”.

 

Um dos usos atribuídos a algumas destas peças era o envio de enxovais benzidos pelo Papa como prendas diplomáticas para as principais cortes católicas por ocasião do nascimento de um novo herdeiro. Podemos encontrar exemplos destes cofres venezianos na coleção do Museu Nacional de Arte Antiga, em Portugal (https://artsandculture.google.com/asset/casket-unknown-author/oQGKs8zlMLTVnQ?hl=pt-pt), no Saint Louis Art Museum nos Estados Unidos da América (https://www.slam.org/collection/objects/3404/) ou, também nos Estados Unidos da América no Art Institute of Chicago (https://www.artic.edu/artworks/248927/casket).

 

No século XIX, no contexto do historicismo vienense, estes requintados objetos, apreciados pela sua opulência, são recuperados e reinterpretados como peças decorativas de aparato.

Inspirados nos gabinetes de curiosidades, nos quais espécimes naturais e objetos artísticos coabitavam, os ourives vienenses criaram extraordinárias peças combinando os mais variados materiais.

Neste cofre da coleção Medeiros e Almeida os protagonistas são o cristal de rocha ou quartzo hialino – material valorizado desde a Antiguidade pela sua beleza natural e capacidade de refratar a luz, muito apreciado pelas cortes europeias do Renascimento e, como tal, recuperado pelos movimentos historicistas oitocentistas, altura em que foi considerado um dos materiais mais preciosos das artes decorativas; o lápis-lazúli – pedra semipreciosa usada também desde a Antiguidade em joalharia, ourivesaria, revestimentos arquitetónicos ou, moído, como pigmento e muito apreciada durante o século XIX, sendo o azul a cor preferida na época; e os esmaltes que aliavam a longa tradição do esmalte vienense com a chegada da prata vinda da Transilvânia, agora favorecida pela formação do Império Austro-húngaro em 1867.

 

Embora o intuito fosse a recriação de formas renascentistas, as técnicas de fabrico tinham, entretanto, evoluído dando lugar a novos modos de execução das peças e modernas formas de trabalhar os materiais. Para a elaboração deste tipo de exemplares era necessária a colaboração de diversos artesãos altamente qualificados, como ourives, joalheiros, esmaltadores, lapidadores ou pintores de miniaturas, sendo que as marcas de autor presentes, como neste caso, correspondem quase sempre ao ourives que desenhou a peça, coordenou o trabalho de todos os outros artífices e que, muitas vezes, também era encarregue de comercializar os objetos finais.

Leopold Weininger (1854-1922), autor deste cofre, era um ourives e joalheiro austríaco de origem judaica, reconhecido como especialista em trabalhos de esmalte e “imitações do antigo”. Trabalhou em diversas moradas em Viena e assina como LW.

Para além deste cofre de aparato, existe na coleção Medeiros e Almeida uma outra peça realizada e marcada por Leopold Weininger, neste caso em colaboração com um outro ourives, Karl Rössler (at. 1890-1916). Trata-se de um relógio de mesa monumental de duplo mostrador e estrutura arquitetónica, que se destaca pela sua raridade – não se conhecendo exemplares semelhantes – e pelo seu elaborado programa decorativo, provavelmente fruto de uma encomenda específica (saiba mais sobre este exemplar em: https://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/relogio-monumental-vienense-destaque-janeiro-de-2015/).

 

Ambas as peças – o cofre e o relógio monumental – para além da marca do autor, apresentam também a marca da cabeça de Diana em perímetro de cinco lóbulos contendo a letra A (correspondente à cidade de Viena) e a marca da pureza da prata (3, para uma pureza de 800/1000), tal como usado a partir de 1872. No caso do cofre, estes dois punções surgem em triplicado, algo habitual em objetos constituídos por várias partes: na base da peça, na tampa principal e na pequena tampa da parte superior.

Desconhece-se a proveniência desta peça em concreto, embora seja plausível que tenha sido comprada, tal como os outros exemplares pertencentes a este núcleo de peças historicistas vienenses da coleção, em 1973, no antiquário N. Bloom & Son Ltd., casa fundada em Londres em 1912 pelo ourives Nathan Bloom e ainda ativa e em mãos da família.

 

Samantha Coleman-Aller

Museu Medeiros e Almeida

 

 

Bibliografia

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Autor

Leopold Weininger (1854-1922)

Data

1883-1922

Local

Viena (Áustria-Hungria)

Materiais

Cristal de rocha, prata, prata dourada, esmalte, lápis-lazúli

Dimensões

A.40 x L.68 x P.43cm

Category
Destaque