Jarra com figuras de europeus – Destaque Maio 2017

Jarra com figuras de europeus

A coleção de porcelana da China do Museu integra um pequeno, mas valioso, núcleo de peças produzidas para o mercado imperial, entre as quais se destaca uma curiosa e rara jarra com a representação de europeus. O motivo insere-se no repertório iconográfico de prestadores de tributo, tema de grande relevância no cerimonial da corte imperial e expressão da centralidade do soberano na ordem universal.

O corpo da jarra é decorado com simbologia auspiciosa e ladeado por duas figuras ocidentais que, pela escala reduzida face à oferenda e pela atitude de reverência expressa na posição ajoelhada, traduzem de forma inequívoca a noção de inferioridade perante o imperador — a presença de europeus numa peça concebida para o contexto imperial só se compreende, assim, pela intenção de reforçar a ideia de supremacia do trono do Filho do Céu sobre todos os povos estrangeiros.

Esta jarra em porcelana, decorada com esmaltes da paleta da família rosa, foi produzida nos fornos imperiais de Jingdezhen, na província de Jiangxi, no sudeste da China, em meados do reinado do imperador Qianlong (1736–1795), da dinastia Qing.

A Dinastia Qing (1644–1911)

A dinastia Qing, de origem manchu (Manchúria, a norte da China), conquistou o império e depôs o último imperador Ming em 1644.

Respeitando em larga medida as tradições culturais e civis chinesas, os Qing conheceram, no século XVIII, um período de grande prosperidade artística sob o governo de três notáveis imperadores: Kangxi (1662–1722), Yongzheng (1723–1735) e Qianlong (1736–1795). Durante o reinado de Qianlong, a China tornou-se a nação mais rica e populosa do mundo. O imperador cultivou uma política de magnificência, promovendo de forma ativa o patrocínio das artes e dos estudos eruditos. Colecionador apaixonado — de porcelanas, jades e esmaltes, entre outros — Qianlong impulsionou com o seu apoio o desenvolvimento destas artes, valorizando também a evocação estética do passado e das épocas clássicas.

Foi ainda no reinado de Kangxi, por volta de 1685, que os Jesuítas introduziram uma nova cor na paleta de esmaltes utilizada na decoração da porcelana: o rosa (fengcai). Esta tonalidade, mais opaca e aplicada em camadas mais espessas, viria a substituir, em grande parte, os esmaltes transparentes da chamada “família verde” (conjunto de cinco cores em que predominava o verde). Na Europa, esta nova paleta ficou conhecida como “família rosa”, enquanto que na China passou a designar-se “yangcai”, isto é, “cores estrangeiras”.

O grande centro produtor de porcelana, os fornos de Jingdezhen, atingiu nesta época um auge em termos de qualidade e quantidade. Sob a direção do superintendente Tang Ying (1682 -1756), responsável pela produção imperial desde 1728 durante o reinado de Yongzheng, Jingdezhen consolidou-se como epicentro do requinte e da inovação técnica da porcelana Qing.

A peça da coleção Medeiros e Almeida

A peça da coleção é uma jarra em forma de ânfora, decorada com esmaltes grossos e brilhantes da paleta da família rosa e apontamentos dourados, ladeada por duas figuras masculinas de corpo inteiro, moldadas e aplicadas lateralmente.

As figuras representam dois europeus — provavelmente holandeses, identificáveis pelos olhos muito grandes e cabelos ruivos — que seguram a jarra, ajoelhados com um joelho no chão. Envergam casacas (uma turquesa com orlas em vermelho-ferro e outra em vermelho-ferro com orlas castanhas), calções (verde e magenta, respetivamente), lenços e tricórnios pretos de feição ocidental, característicos do século XVIII, embora as casacas apresentem padrões florais e vegetalistas de inspiração oriental, uma a dourado e a outra a tinta da China. As figuras foram certamente inspiradas em estampas europeias coevas que circulavam na época e serviam de modelo aos ceramistas.

O corpo ovoide, de fundo branco, apresenta uma cuidada e harmoniosa composição decorativa em esmaltes da família rosa, enriquecida com apontamentos a dourado, revelando a mestria dos pintores dos ateliês imperiais de Jingdezhen. A composição conjuga motivos auspiciosos e budistas com enrolamentos vegetalistas que se desenvolvem a partir dos elementos florais, já denunciando a influência da pintura europeia.

A iconografia encontra-se carregada de significados, sugerindo conotação imperial: suásticas invertidas (wan), símbolo budista que representa bênçãos espirituais e votos de descendência; limões “mão de Buda” (foshu), associados à felicidade e à alegria; um invulgar morcego azul (fu) — homófono da palavra “bênção” —, símbolo de boa sorte; flores de lótus, em botão e abertas, representando pureza e perfeição; e os cogumelos (lingzhi), fungo sagrado símbolo da imortalidade, todos envolvidos por uma elaborada e colorida folhagem.

A boca da jarra é delimitada por um raro anel amarelo, enquanto o centro do pescoço apresenta uma faixa igualmente rara, também de fundo amarelo. Ambos os elementos são ornamentados com minuciosas representações de flores de lótus entre enrolamentos vegetalistas, destacando-se a exclusividade do amarelo, cor reservada à família imperial. O pescoço exibe ainda frisos de cabeças de ceptro (ruyi), de lingzhi e de folhas lanceoladas. A decoração repete-se simetricamente em ambas as faces da peça.

 

As duas figuras europeias são representadas em atitude de tributo perante a corte imperial chinesa, oferecendo a jarra. A escala reduzida das figuras em relação à peça reforça visualmente a ideia de inferioridade perante o imperador.

Peças desta tipologia são raras e altamente valorizadas no mercado interno chinês, sobretudo no contexto de oferendas ao imperador, indicando que se trata de um exemplar concebido para consumo doméstico de elite, apesar da presença de figuras ocidentais.

A base da peça apresenta a marca do reinado de Qianlong, em forma de selo (zhuanshu), corroborando a produção para o entorno imperial. A forma da jarra indica o final do reinado, segundo análise do Professor Dr. Peter Lam. A elevada qualidade de execução, temática singular e decoração auspiciosa situam a peça em paralelo com outros exemplares de destaque em coleções importantes, reforçando a probabilidade de se tratar de um objeto destinado ao mercado imperial.

A jarra assenta numa base de madeira posterior, em forma de morcego (século XIX); a base original seria em porcelana.

Nota: Existem vestígios de intervenções de restauro antigas (mangas da casaca verde, lenços e meia do lado esquerdo).

Nota: O Museu Medeiros e Almeida agradece os valiosos contributos de Colin Sheaf, ex-Diretor Arte Asiática da leiloeira Bonhams de Londres, do Professor Dr. Peter Lam do Institute of Chinese Studies, The Chinese University de Hong Kong, de William Sargent, ex conservador do Peabody Essex Museum de Salem E.U.A., e da Professora Ching-Fei Shi da Universidade de Taiwan.

 A representação de europeus na porcelana chinesa 

A partir do reinado de Kangxi (1662–1722), a temática de cenas europeias começou a ser introduzida na porcelana chinesa, assim como a produção de figuras de vulto representando europeus. Estas peças, inspiradas em fontes gráficas que circulavam no país — como gravuras e desenhos dos séculos XVI a XVIII — destinavam-se inicialmente ao mercado de exportação europeu e eram conhecidas como “Chine de Commande”.

Embora a produção de estatuetas se tenha intensificado apenas em meados do século XVIII, já no final do século XVII e início do século XVIII (c. 1690–1730) se produziam pequenos grupos de europeus em porcelana branca de Dehua (blanc de Chine), provenientes da província de Fujian. Estes conjuntos, de reduzida dimensão, identificam-se facilmente pelos tricórnios, casacas, calções, meias e lenços ao pescoço, características que passaram a definir genericamente a figuração de europeus (não especificamente holandeses).

Na segunda metade do século XVIII, os artesãos chineses começaram também a copiar modelos de manufaturas de faiança e porcelana europeias, evidenciando a influência da cerâmica europeia na porcelana chinesa — fenómeno conhecido como “torna-viagem”. Assim surgem modelos tão diversos como vacas de Delft, cestos de Meissen ou terrinas em forma de perdiz ou cabeça de animal como vacas e javalis, provenientes de faianças alemãs, francesas e inglesas. Pequenas estatuetas de 20–25 cm representando homens, mulheres e casais dançando ou de mãos dadas sobre uma base comum eram exportadas para a Europa, onde, juntamente com figuras de animais e outros objetos, decoravam mesas e ambientes aristocráticos, modelos esses que em muito se assemelham às figuras presentes na jarra em questão. Na aquisição por Medeiros e Almeida, o texto do lote mencionava uma rara peça pertencente à coleção da Srª. D. Mary Espírito Santo Silva, representando três europeus de corpo inteiro a carregar um grande recipiente cilíndrico (alt. 23 cm.), cujas figuras se assemelham às da jarra da coleção Medeiros e Almeida. Esta peça, uma floreira, identificada como uma peça de exportação (não imperial), foi publicada por Michel Beurdeley (1962, p. 125), sabendo-se que foi vendida pela família para uma coleção particular nos Estados Unidos. A floreira foi posteriormente publicada no livro Porcelanas da China – Colecção Ricardo do Espírito Santo Silva (FRESS, 2000, p. 38), editado por ocasião do centenário de Ricardo do Espírito Santo Silva, indicando a sua localização à época.

Nota: O Museu agradece as informações prestadas pela Dra. Cláudia Lino, conservadora da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, Lisboa.

A representação de cenas com prestadores de tributo ao imperador surge ocasionalmente em porcelana, rolos de pintura e conjuntos de figuras de marfim (Howard e Ayers, 1978). Contudo, raramente figuras de europeus eram moldadas em porcelana e ainda menos aplicadas em outro tipo de peças, tornando-as especialmente auspiciosas e do gosto do imperador Qianlong.

Enquanto casais de europeus, animais e outros objetos se inspiravam em estampas ou em peças de faiança europeias, as representações de prestadores de tributo não têm correspondente direto em gravuras europeias, sendo produto da imaginação do “diretor artístico” da manufatura (possivelmente o superintendente), embora baseadas em conhecimentos da gramática decorativa europeia. Esta originalidade reforça o valor único das peças.

A curiosa taça suportada por europeus ajoelhados do Museu é, portanto, uma peça de características únicas: rara na forma, original na modelação, excepcional na qualidade da decoração e da execução. Insere-se entre as poucas peças produzidas com a representação tridimensional de ocidentais em atitude de subserviência perante um imperador estrangeiro, reforçando a ligação entre simbolismo auspicioso, exotismo e gosto imperial.

 

Proveniência
Em 20 de Julho, 1970, a peça foi a mercado na leiloeira Christie’s (lote 69) de Londres, tendo sido adquirida por comprador desconhecido (Glatz), provavelmente para o antiquário de Genebra, Jade Company S.A. Antiquaires, rue Cornavin 3, Genebra, Suíça.

O colecionador comprou a jarra no referido antiquário de Mark Lewin, a Jade Company S.A., em Genebra, no ano seguinte, a 26 de Fevereiro de 1971, pelo valor considerável de 18.000 Francos suíços para a sua coleção de Lisboa. Em 2001 integrou o acervo do Museu Medeiros e Almeida.

 

Registo de peças semelhantes

Uma galeria de Nova Iorque, a Chinese Porcelain Company, publicou em 2000 a obra A Dealer’s Record 1985-2000, que, na página 185, regista uma peça de tipologia semelhante à do Museu: duas figuras pintadas em esmaltes coloridos sustentando uma jarra com o corpo em celadon esbranquiçado (atualmente pertencente à Coleção Renato Albuquerque, Linhó, Portugal). Segundo a publicação, a peça integrava então uma coleção particular americana e foi posteriormente levada a leilão, em setembro de 2015, na leiloeira Christie’s, em Nova Iorque (lote 2251), tendo sido adquirida, como hoje se sabe, pelo colecionador brasileiro.

Em Janeiro de 2020, o Arts Institute de Chicago comprou uma peça semelhante à do Museu, com a decoração em espelho, no mercado americano. Levanta-se a possibilidade de uma encomenda imperial do par de jarras, o que requer estudo e investigação aprofundada.

Agradecemos a informação a Ellenor Alcorn, conservadora do departamento Europeu de artes decorativas do Arts Institute de Chicago.

 

Maria de Lima Mayer
Museu Medeiros e Almeida

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@museumedeirosealmeida.pt


Bibliografia

Impressa

ANTUNES, Mary Espírito Santo Salgado Lobo (coord.); Porcelanas da China: Coleção Ricardo do Espírito Santo Silva, Lisboa: F.R.E.S.S., 2000 (fig. 72)

ANTUNES, Mary Salgado Lobo; LOUREIRO, Rui Manuel; ALVES, Jorge M. dos Santos; MATOS, Maria Antónia Pinto de; Caminhos da Porcelana: Dinastias Ming e Qing / The Porcelain Route: Ming and Qing Dynasty, Lisboa: Fundação Oriente, 1998

AYERS, John; HOWARD, David; China for the West, vol. I, Reino Unido, 1978 (p. 618)

BEURDELEY, Michel; Porcelaine de la Compagnie des Indes, Fribourg: Office du Livre, 1962

CANEPA, Teresa; Cenas Europeias na Arte Chinesa, Londres: Jorge Welsh Books, 2005

GORDON, Elinor; Chinese Export Porcelain: An Historical Survey, Nova Iorque: Main Street / Universe Books, 1977 (figs. 11/12)

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MATOS, Maria Antónia Pinto de; A Casa das Porcelanas – “Cerâmica Chinesa da Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves”, Lisboa: Instituto Português dos Museus / Philip Wilson Publishers, 1996

MATOS, Maria Antónia Pinto de; Global by Design: Chinese Ceramics from the R. Albuquerque Collection, London and Lisbon: Jorge Welsh Research & Publishing, 2016

SARGENT, William R.; The Copeland Collection: Chinese and Japanese Ceramic Figures, Salem, Massachusetts: Peabody Essex Museum, (p. 220)

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Webgrafia

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Christie’s – Chinese Porcelain: Collecting Guidehttp://www.christies.com/features/Chinese-porcelain-Collecting-guide-7781-1.aspx?sc_lang=en

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The Metropolitan Museum of Art – A Handbook of Chinese Ceramicshttp://www.metmuseum.org/art/metpublications/A_Handbook_of_Chinese_Ceramics

 

Autor

Fornos de Jingdezhen

Data

Dinastia Qing, reinado Qianlong (1736-1795), meados séc. XVIII

Local

Província de Jiangxi, China

Materiais

Porcelana, madeira huali (base)

Dimensões

Alt. 42 cm. x Larg. 29,5 cm. x Diam. boca 12,7 cm. x Diam. base 12,5 cm.

Nº Inv.

FMA 4500

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Destaque