Consola e Pedestal, François Linke: a confirmação – Destaque Abril 2022

DESTAQUE ABRIL 2022

 

Consola e Pedestal, François Linke: a confirmação

 

Fechadas nas reservas da coleção desde os anos setenta, saem este mês para exposição pública, duas peças de mobiliário francês de exceção, de finais do século XIX, inícios do século XX. Tratam-se de uma consola e um pedestal  folheados e embutidos com madeiras exóticas e decorados por bronzes dourados, apresentando tampos de mármore. Após estudo pelas conservadoras do Museu, encontram-se agora expostas no recentemente renomeado Átrio Linke.

 

Adquirida em Londres em 1970, a consola folheada a madeiras exóticas e decorada por bronzes, permaneceu vários anos longe do olhar do público, parte deles em casa de Medeiros e Almeida, no nº 39 da rua Rosa Araújo, morada para a qual o casal Almeida se muda no início dos anos 70, coincidindo com a criação da Fundação Medeiros e Almeida.

“Redescoberta” há pouco e agora estudada, a sua qualidade técnica e estética, permitem-nos trazê-la ao usufruto de todos, passando a integrar um pequeno, mas excepcional núcleo de peças, único em Portugal.

A 12 de Janeiro de 1970, António de Medeiros e Almeida escreve à South Audley Art Galleries, solicitando duas consolas francesas de estilo Luís XV. A resposta, datada de 19 de Janeiro seguinte, informava que este antiquário tinha para venda não duas mas “apenas uma [consola] Luís XV de magnífica qualidade…com bom tampo de mármore de Breccia e bons bronzes com cabeças de figuras femininas na parte superior das pernas e com uma figura musical [na união das] travessas. Isto é uma peça soberba e há muito tempo que não tínhamos nada tão bom em stock.” O preço pedido era de 975£ tendo sido adquirida por 900£ poucos dias mais tarde.

A consola de excelente qualidade técnica e artística tem o esqueleto em mogno (?) folheado a pau-rosa e pau violeta sendo decorada com bronzes dourados. Apesar de não estar estampilhada, esta peça é absolutamente idêntica a outras produzidas pelo mais renomado ebanista da Belle Époque: François Linke (1855-1946).

 

Adquirido em Londres à Maple & Comp. em fevereiro de 1972, o pedestal folheado a madeiras exóticas, decorado por bronzes dourados e com tampo de mármore, foi vendido como uma peça datada de cerca de 1850 e marcada por François Linke. Em reserva nos últimos anos, o seu estudo permitiu-nos confirmar a autoria e corrigir a datação atribuída, merecendo ser exposto.

 

François Linke

Nascido em Pankraz, na actual Républica Checa, Franz Linke iniciou a sua aprendizagem na terra natal, tendo emigrado para Paris com cerca de 20 anos, afrancesando o nome para François. Aí começa a trabalhar com e para outros ebanistas como os conhecidos Joseph Emmanuel Zwiener (1848-1895), também de origem alemã ou com a Maison Jansen do holandês Jean-Henri Jansen (1854-1928).

Autonomiza-se em 1881, estabelecendo a sua oficina no bairro dos ebanistas no faubourg Saint Antoine. O seu trabalho inicial inspirou-se nos estilos franceses como, no rococó, Luís XV, Luís XVI e até mesmo no trabalho de André-Charles Boulle, respondendo à procura do mercado, de gosto tradicional e revivalista, gerando assim condições financeiras de autonomia.

Com o aproximar do final do século, a sua imaginação irá criar peças de um gosto híbrido, com recurso a materiais ricos como as madeiras exóticas, esculturas em bronze dourado, técnicas refinadas como os marchetados e formas faustosas, criando o designado estilo Linke no qual, os estilos precedentes se fundem com a recente Arte Nova, dando origem a peças de carácter único.

A conjugação de todos estes factores fizeram de Linke o mais famoso ebanista na viragem do século. Famílias reais europeias, nobreza e burguesia endinheirada compravam-lhe peças ou mobílias inteiras. No pós I Guerra Mundial, recebe a encomenda faraónica para mobilar o palácio Ras al -Tin em Alexandria, a pedido do rei Fuad do Egipto.

A sua máxima criatividade manifestou-se aquando da Exposição Universal de Paris de 1900, para a qual projectou 25 peças, mas das quais só conseguiu terminar a tempo de serem expostas 16, numa corrida contra o tempo e enorme esforço financeiro. As restantes foram concluídas mais tarde e exibidas noutras exposições internacionais como a de Saint Louis em 1904, Liège em 1905.

À época, as exposições constituíam uma das principais formas de divulgação de produtos e empresas, atraindo milhões de pessoas, potenciais clientes e sem dúvida que Linke beneficiou muito da sua participação nestes eventos, tendo também participado na exposição Franco-Britânica de Londres, em 1908.

 

O seu sucesso, deveu-se também à colaboração de cerca de 16 anos, com escultor bronzista Léon Messagé (1842-1901) que já trabalhava com Zwinner. Os seus bronzes imprimiam particularidades únicas aos móveis onde eram aplicados, uma vez que, se caracterizavam não pelo simples adorno, mas pela escultura de volumosas figuras cheias de movimento, que valorizavam estética e financeiramente as peças, enchendo de requinte os móveis. Messagé desenhava as peças, passando-as depois para um modelo tridimensional de cera e finalmente eram transpostas para modelos à escala, pelos artesãos de Linke. O escultor reproduziu diversas vezes o mesmo modelo de peça para adornar trabalhos de diferentes ebanistas uma vez que, era o detentor dos direitos das mesmas. Após a sua precoce morte aos 58 anos, Linke adquire os direitos sobre os desenhos e maquetes de Messagé podendo continuar a reproduzi-los.

A associação do trabalho destes dois artistas resultou em peças de aparato, luxuosas e caras, daí que algumas delas, em particular, das que participaram nas exposições internacionais só tenha sido produzido um número reduzido de exemplares, por vezes únicos, de que o museu possui o móvel de aparato.

 

Arte Nova

A Arte Nova, movimento artístico surgido na última década do século XIX, pautou-se por uma reação aos seus antecessores, em particular aos revivalismos historicistas, muito populares neste século, que como revivalismos que eram, se caracterizavam por alguma falta de criatividade.

Na sua génese um gosto e uma inspiração profunda na natureza irão definir as suas linhas. Pretendia-se uma aproximação ao meio ambiente por oposição à industrialização e ao academismo das artes. O movimento pese embora a curta longevidade, durou cerca de 25 anos até ao início da I Guerra Mundial, espalhou-se por toda a Europa, assumindo diferentes denominações: Jungdstil na Alemanha, stile Floreale ou Liberty em Itália, Sezessionstil na Áustria, Modernismo em Espanha, Art Nouveau em França e na Bélgica ou Arte Nova em Portugal.

A sua forma base é o movimento ondulado assimétrico, inspirado na vegetação, nomeadamente nos caules de flores, surgindo também como motivo essencial a própria flor. Na arquitetura, o cruzamento de linhas estruturais e decorativas com vários tipos de materiais irão dar características exuberantes aos edifícios. As artes decorativas seguem os mesmos pressupostos, nomeadamente no mobiliário que se enche de movimentos ondulados.

 

Com o aproximar do final do século XIX, a imaginação de François Linke irá criar peças de um gosto híbrido, com recurso a materiais ricos como as madeiras exóticas, esculturas em bronze dourado, técnicas refinadas como os marchetados e formas faustosas, nas quais os estilos precedentes se fundem com a recente Arte Nova, dando origem a peças de carácter único, originando o designado estilo Linke, muito bem sucedido no inicio do século XX. No entanto, o advento da I Guerra Mundial e posterior surgimento da Art Déco, conduzirão a uma quebra do seu êxito, que Linke procurou colmatar produzindo peças neste último gosto, mas sem o sucesso que conhecera anteriormente.

 

Consola

François Linke deixou um vasto conjunto de documentação, anotações do seu trabalho diário, que hoje nos permite conhecer detalhadamente muitas das peças por si produzidas. Este modelo de consola aparece referido na documentação com o nº 153, conhecendo-se vários exemplares, embora com pequenas alterações ao nível dos bronzes, nomeadamente no concheado central do aro. De facto, têm surgido no mercado de arte consolas iguais, mas cuja decoração é uma concha ou um outro motivo em bronze, típico de Linke, fazendo lembrar um “caranguejo”.

A consola da coleção, é uma peça em mogno(?) folheado a pau-rosa e decorada por quatro bustos de figuras femininas – espagnolettes, filetes e aplicações de concheados em bronze, apresenta as quatro pernas unidas por travessas ostentando ao centro figura de músico, também em bronze, apresenta a meio do aro um concheado vazado.

 

O grosso tampo em mármore Breccia, acompanha o recorte da consola. As costas do mármore são polidas, caraterística do trabalho de Linke.

 

Christopher Payne, investigador que estudou detalhadamente o arquivo de Linke refere que as quatro espagnolettes ao gosto do século XVIII, seguem a influência rococó de Cuvilliés, notando que neste caso o gosto se inspira num revivalismo e não na contemporaneidade da Arte Nova.  Várias das peças de bronze que compõem a sua decoração estão marcadas com as letras LF no tardoz, permitindo remeter a autoria desta peça para François Linke (curiosamente as inicias foram aplicadas ao contrário).

 

 

Numa fase inicial do seu trabalho e prática corrente à época, Linke não assinava as suas peças (não sendo esta consola assinada) pois trabalhava para outros ebanistas, que não queriam que os clientes o contactassem directamente. Sabe-se que por exemplo, em 1900, a Casa Bing Fils et Compagnie, em Paris, comprou uma destas peças, demonstrando assim que Linke continuava a fornecer produtos para revenda. Não raramente, as peças eram marcadas por essas firmas como sendo suas, conhecendo-se diversos revendedores em Inglaterra e em França que o fizeram.

 

Num dos primeiros livros de anotações de François Linke (estudados por Christopher Payne), existe um esquisso identificado com o nº133 referente a esta peça, datado da 1ª metade(?) da década de 1890, o que permite remeter a criação deste modelo para este período.

Esta peça, ou outra igual, surge em imagens do salão de exposição e venda que Linke abriu na Place Vêndome, em Paris, em 1903, tal como a que fazia parte da decoração do apartamento do ebanista, em 1916, situado no Quai Henri IV, nº32, aparecendo numa foto da época.

 

No mercado de arte surgem ocasionalmente peças deste autor que atingem preços significativos:

https://www.christies.com/lot/lot-6338699

https://www.1stdibs.com/en-gb/furniture/tables/tables/fine-francois-linke-ormolu-mounted-kingwood-console-table/id-f_14057492/

https://www.christies.com.cn/lot/a-french-ormolu-mounted-mahogany-console-table-by-6338699/?intObjectID=6338699&lid=4

 

 

Pedestal

A partir de 1885 Linke começa a produzir uma tipologia de móvel que se manteve até cerca de 1930: o pedestal. O modelo, único ou em pares, grosso modo o mesmo, caracteriza-se por um corpo quadrangular, alto e abaulado em três ou nas quatro faces estreitando no colo, para alargar novamente no topo que é rematado por tampo de mármore.

 

Numa fase inicial, de 1885 até cerca de 1913, os pedestais eram decorados em apenas três das quatro faces, devendo por isso, ser encostados a uma parede. A partir desta data, as peças produzidas passam a apresentar todas as faces decoradas, prolongando-se a sua produção até cerca de 1930.

Em geral, seguem uma tipologia decorativa semelhante: face frontal com embutidos de flores suspensas de uma laçada e faces laterais de padrão geometrizado, em parqueté (realizada/decorada à maneira dos pavimentos), dando por vezes a ilusão de tridimensionalidade, emoldurado por pau-rosa.  Os cantos são rematados por filetes em bronze com motivos vegetalistas no topo, por aplicações de concheados na frente, assim como os pés, igualmente revestidos com este metal.

O pedestal do Museu segue esta tipologia estética: a frente apresenta dentro de moldura de pau-violeta uma suspensão de flores e frutos (cacho de uvas) e no colo um pequeno ramo com flores e bagas. Nas faces laterais, um axadrezado de losangos em tons e madeiras contrastantes. É uma peça para encostar à parede, uma vez que as costas não são decoradas.

 

Certificado pela casa que o vendeu, em Londres, em 1972, não se encontra marcado nos bronzes por Linke como referido no certificado (“…signed under the mount…”), no entanto, apresenta a marca da Maple & Comp. no tardoz.

 

 

A Maple & Comp., um dos principais fabricantes de mobiliário nesta cidade até meados do século XX, com lojas em Paris, Londres e Buenos Aires, adquiria peças não marcadas de Linke, num período relativamente precoce do seu trabalho. De facto, esta casa londrina aparece referenciada como cliente, nos registos de entregas de Linke entre 1888 e 1891.

 

Pedestais em leilão:

https://www.christies.com/lot/lot-5937708

https://www.christies.com/lot/lot-5741365

https://www.christies.com/lot/lot-5931847

 

Sabemos que através da participação na exposição Franco-Britânica de Londres em 1908, Linke terá vendido diversas peças de mobiliário a fabricantes revendedores ingleses, nomeadamente a Bertram & Son of Dean St. London e a Hindley & Wilkinson, sabendo-se que pedestais deste tipo estavam à venda nestes retalhistas.

Linke na sua documentação identifica os modelos de pedestais por números, sendo esta peça o nº 126 ou 134.

 

As peças apresentadas neste estudo vêm assim juntar-se a outras duas já expostas, o móvel de aparato e o relógio de caixa alta, passando a integrar um núcleo único em museus portugueses, de peças da autoria deste ebanista, “último” representante da marcenaria de luxo, francesa merecendo por isso, todo o destaque assim como, uma nova denominação para o espaço onde se expõem: Átrio Linke.

 

 

 

Nota

O Museu agradece ao investigador Christopher Payne toda a colaboração e informação disponibilizada, vinculando a autoria de François Linke destas duas peças.

 

 

Cristina Carvalho

Museu Medeiros e Almeida

 

 

NOTA: A investigação em História da Arte é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, agradecemos o contacto para: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

 

Bibliografia

LEDOUX-LEBARD, D. – Les Ébénistes du XIXe Siècle: 1795-1889: leurs oeuvres et leurs marques, Editions de L’Amateur, 1984

MESTDAGH, Camille; LÉCOULES, Pierre –  L’Ameublement d’Art Français, 1850-1900. Les Editions de L’Amateur, Paris, 2010

PAYNE, Christopher – François Linke 1855-1946: the belle époque of french furniture. Antique Collector’s Club, Suffolk, 2003

PAYNE, Christopher – 19th Century European Furniture. Antique Collector’s Club, Suffolk, 1989

SOUSA, Conceição Borges de – Normas de Inventário – Mobiliário, artes plásticas e artes decorativas. Instituto Português de Museus, Lisboa, 2004

Webgrafia

Christopher Payne & Linke Furniture – François Linke (1855-1946) The Belle Epoque of French Furniture  http://www.linkefurniture.com/

Tholozany, P.; The Expositions Universelles in Nineteenth Century Paris – in: Brown University Library Center for Digital Scholarship, 2011 – http://library.brown.edu/cds/paris/worldfairs.html#de1900

Autor

François Linke (1855-1946)

Data

Consola - c. 1890 - 1910(?) Pedestal - c. 1900 - 1910

Local

Paris, França

Materiais

Mogno, pau-rosa, pau-violeta, bronze, mármore

Dimensões

Consola - Alt. 96cm x Larg. 137cm x Prof. 49cm Pedestal - Alt. 108cm x Larg. 33cm

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