Caixas diplomáticas – Destaque em Março 2021

PEÇA EM DESTAQUE CMMA – Março 2021

 Caixas diplomáticas do Grão-duque Michael Alexandrovich

 

 

Caixa “Fernando I da Bulgária”

C.M. Weishaupt & Söhne (desde 1837)

Hanau (Alemanha), 1887-1908

Ouro, diamantes, pedraria e esmaltes

Alt. 4,8cm. / Comp. 8,2cm. / Larg. 11,1 cm.

 

 

 

 

Caixa “Guilherme II da Alemanha”

Gebr. Friedländer (1829-1938)

Berlim (Alemanha), após 1889

Ouro, prata e diamantes

Alt. 3,1cm / Comp. 6,3cm / Larg. 9,2cm

 

Existem na coleção Medeiros e Almeida mais de meia centena de caixas de rapé, das quais trinta e cinco se encontram em exposição permanente numa vitrina da Sala do Lago.

Entre estas caixinhas, várias pertencem à categoria das ditas “caixas diplomáticas”, um tipo particular de caixa de rapé cuja função era mais simbólica do que propriamente utilitária.

 

Destacamos nesta Peça do Mês duas caixas diplomáticas em ouro, produzidas na Alemanha, em finais do século XIX, que pertenceram ao Grão-duque Michael Alexandrovich (1878 – 1918), irmão mais novo do czar Nicolau II da Rússia.

 

O tabaco e as caixas de rapé

Originária dos Andes, a planta do tabaco espalhou-se por toda a América com as migrações dos povos ameríndios que usavam as suas folhas (em pó, mascadas, fumadas ou em infusão), com finalidades rituais, terapêuticas ou de lazer.  O primeiro contacto dos europeus com o tabaco foi com a chegada de Cristóvão Colombo à América, em 1492. Durante os séculos XVI e XVII a sua utilização difundiu-se por toda a Europa, muitas vezes associando o seu uso a presumíveis propriedades terapêuticas como, supostamente, seria o caso cm Catarina de Médicis (1519-1589), à qual Jean Nicot (1530-1604), na altura Embaixador da França em Portugal, teria enviado tabaco para aliviar as suas enxaquecas, solução posteriormente imitada pelos nobres da sua corte. Embora nem sempre popular e em ocasiões perseguido, o uso do tabaco está completamente normalizado e divulgado na segunda metade do século XVII.

 

O rapé (do francês râpé, ralado) – um preparado de tabaco moído, às vezes aromatizado, para o seu consumo por via nasal – vai alcançar grande popularidade durante o século XVIII, o que levará ao aparecimento de objetos, nomeadamente caixas, para o seu armazenamento e transporte. As caixas de rapé são, na maioria dos casos, criadas para conter pequenas quantidades de tabaco em pó para uso pessoal (normalmente a quantidade a ser consumida durante um dia), embora também existam caixas maiores para uso comum: as caixas de rapé de mesa. Realizadas em todo tipo de formas e materiais (desde as mais ricas de ouro, pedras preciosas, esmaltes ou tartaruga, até as de madeira, papel-machê ou polpa de batata) as caixas de rapé são fabricadas por toda Europa, embora os exemplares mais cobiçados sejam os realizados em Paris (tabatières) durante o século XVIII, que serão imitados por todo o continente. O uso das caixas de rapé não só dará lugar a um florescente mercado das mesmas, como vai desenvolver hábitos de conduta específicos – a forma de segurar e abrir a caixa ou o uso de lenços para amparar os frequentes espirros – e vai influenciar também a vestimenta, com o incremento de bolsos para conter estes novos acessórios.

 

As caixas de rapé, com a sua cuidada decoração, ganharam o estatuto de símbolos sociais e foram utilizadas como ofertas entre amigos e amantes, mas também como presentes diplomáticos, dando lugar a uma nova categoria.

 

Caixas diplomáticas

Por entre os monarcas europeus difundiu-se o hábito de presentear os seus pares, assim como os seus embaixadores e, em ocasiões, cortesãos, com caixas de rapé. Este hábito – que curiosamente ultrapassou a própria moda do tabaco em pó e se estendeu até inícios do século XX – tem os seus antecedentes nas “boîtes à portrait” (caixas com retratos), popularizadas por Luis XIV (1638-1715): estojos muito elaborados, usualmente usados como pendentes e frequentemente esmaltados e enfeitados com pedras preciosas, destinados à preservação de imagens pintadas, muitas vezes o próprio retrato do monarca.

Esta prática está associada a diversos aspetos sendo que, na maioria dos casos, não se tratava de uma expressão de afeto ou generosidade pessoal por parte do soberano, mas responderia a situações específicas tais como: a demostração de boas relações entre duas nações; símbolos de respeito para com alguém; homenagem a um serviço excecional ou remuneração num contexto no qual o intercâmbio monetário não seria considerado adequado. Também era frequente as casas reais encomendarem caixas de rapé para apresentar em celebrações especiais como coroações ou casamentos.

 

As caixas diplomáticas, também chamadas caixas imperiais, são quase sempre peças muito ornamentadas e que apresentam na tampa as armas, o retrato ou o monograma do respetivo governante, como é o caso das duas caixas aqui em estudo.

O tipo de caixa depende em grande medida da ocasião e do destinatário sendo que, por exemplo, não será igual a caixa realizada para oferecer a outro monarca com a que é presenteada a um cortesão como pagamento de um serviço prestado. Neste sentido, cabe salientar que a diferença não está unicamente no valor da caixa, mas também no facto de as últimas raramente apresentarem inscrições já que, uma vez obsequiada, o recetor tinha a opção de devolvê-la ao fabricante em troca de dinheiro, de modo que a caixa seria apenas um valor de câmbio e poderia ser “reciclada” e novamente presenteada pelo monarca.

 

Caixas do Grão-duque Miguel Alexandrovich da Rússia na coleção da Casa-Museu

A 25 de fevereiro de 1964, António Medeiros e Almeida compra no leilão da Christie’s de Londres “Fine Gold Boxes and Objects of Art and Vertu” -, através do comerciante de arte Edgar Mannheimer (1925-1993), especializado no comércio de relógios, instrumentos científicos e caixinhas -, duas caixas: lotes 169 e 170. O catálogo do leilão refere a procedência destas caixas, as quais teriam sido ofertadas ao Grão-duque Miguel Alexandrovitch, irmão mais novo do czar Nicolau II da Rússia, pelo Kaiser Guilherme II da Alemanha (1859 – 1941) e pelo Imperador Francisco José da Áustria (1830 – 1916).

 

Posteriormente as caixas teriam sido vendidas pelo ajudante-geral do Grão-duque, Khan Nachitchevanski (1863-1919), a um Mr. Nagurski. Finalmente as caixas teriam chegado às mãos do proprietário que as vendeu em leilão através do seu irmão, que trabalhava na empresa de Mr. Nagurski, a Messrs Nagurski and Stavseth.

No catálogo vem referido um documento que comprovaria esta proveniência e que estaria agregado à venda das caixas, mas não existe nos arquivos do museu qualquer registo deste documento.

 

 

Caixa “Fernando I” (FMA 926)

 

 

Como anteriormente referido, esta caixa foi vendida como tendo sido uma oferta do Imperador Francisco José da Áustria ao Grão-duque Miguel Alexandrovitch, já que o monograma presente na tampa terá sido erroneamente identificado como sendo o deste Imperador da Áustria e Rei da Hungria, Croácia e Boémia.

Foi assim que durante décadas permaneceu inventariada, até que, no curso desta pesquisa, o monograma foi reatribuído a Fernando I da Bulgária (Ferdinand Karl Leopold Maria of Saxe-Coburg-Gotha, Viena 1861 – Coburgo 1948), sendo formado pelas suas iniciais em cirílico (Ф) e encimado pela coroa real búlgara (coroa fechada encimada por cruz grega e duas fitas terminadas por borlas) o que, como veremos, é corroborado pelo brasão patente no estojo da caixa.

 

Trata-se de uma caixa imperial em ouro de duas cores, com formato de cartela e laterais abaulados. Na tampa, articulada por meio de dobradiça, ao centro, destaca-se uma placa oval esmaltada em azul royal e vermelho, ligeiramente elevada, com monograma coroado, formado por diamantes engastados, e emoldurada por três cercaduras de diamantes de diversos tamanhos. De cada lado do medalhão central, três pedras de cor cravejadas em garra: uma branca, uma verde e uma vermelha representando a bandeira da Bulgária.

Toda a superfície exterior da caixa – tampa, laterais e fundo – apresenta decoração entalhada e gravada de folhagens, flores, enrolamentos vegetalistas e formas geométricas sobre fundo trabalhado em guilhoché.

 

O interior da caixa é liso, apresentando no fundo e na tampa a marca do ourives, (“CMWS”, referente a Carl Martin Weishaupt & Söhne), a marca padrão de 14 quilates e a punção da cidade de Hanau, para além de uma outra punção, ainda não identificada, presente unicamente no fundo da caixa. No bordo, onde a tampa encaixa com a parte inferior, existe um número de inventário (provavelmente do próprio ourives): 3327, e outros dois números riscados que poderiam (ou não) ser posteriores: XI e 124.

 

 

A casa que realiza esta caixa, a Carl Martin Weishaupt und Söhne, tem as suas origens em 1801, quando Carl Martin Weishaupt se estabelece como ourives na cidade de Hanau na Alemanha. Em 1837 a firma passa a estar já registada com o nome usado na marcação da nossa peça, especializando-se no fabrico de caixas de rapé e objetos preciosos e realizando encomendas para numerosas cortes europeias, entre as quais diversas caixas imperiais destinadas a ser presentes diplomáticos, como a aqui tratada. Ao longo dos anos a firma participa em várias exposições internacionais (Berlim, Londres, Paris), obtendo diversas distinções.

 

Outras caixas imperiais de Carl Martin Weishaupt & Söhne, de similar formato e tipo de composição, podem ser vistas aqui:

https://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/lot.43.html/2013/orfevrerie-europeenne-boites-or-objets-vitrine

https://www.uhren-muser.de/en/52277/maker-s-mark-cmws-carl-martin-weishaupt-soehne-hanau

https://atzbach.com/product/grand-duke-konstantin-nikolaevich-a-diamond-set-gold-imperial-presentation-snuff-box/

 

Esta caixa foi adquirida com o seu estojo original.  No exterior, forrado a veludo vermelho, o brasão búlgaro ao centro que, para além de apoiar a tese de que esta peça terá sido uma encomenda do Príncipe Fernando I, ajuda na sua datação, já que o escudo da Saxónia (colocado a modo de sobrescudo ou escudete sobre o leão dourado rampante da Bulgária), assim como o mote presente: ВѢРНОСТЬ И ПОСТОЯНСТВО (tradução para búlgaro do mote da Ordem da Casa Saxónia-Ernestina: FIDELITER ET CONSTANTER – fidelidade e firmeza), foram introduzidos pelo monarca e posteriormente descartados, quando a Bulgária foi declarada reino, o que situa a manufatura desta caixa entre 1887 e 1908.

 

 

No interior da tampa, sobre seda bege, inscrevem-se gravados a ouro os brasões do Reino de Montenegro e da Áustria Imperial e a inscrição: “V. MAYER’S FILS, FOURNISSEURS DE LA COUR DE SA MAJESTÉ L’EMPEREUR D’AUTRICHE ET DE SON ALTESSE LE PRINCE DE MONTÉNÉGRO. VIENNE” (V. Mayer’s Fils, Fornecedores da Corte de Sua Majestade o Imperador da Áustria e da Sua Alteza o Príncipe de Montenegro – Viena).

 

 

 

Caixa “Guillerme II” (FMA 918)

Caixa de rapé oval em ouro que terá sido oferecida por Guilherme II, último Imperador alemão e Rei da Prússia, ao Grão-duque Miguel Alexandrovitch.

 

 

No centro da tampa apresenta-se o monograma de Guilherme II (um “W” encimado por coroa real), desenhado por diamantes e rodeado por cercadura também de diamantes. De cada lado, uma pedra de cor branca, de maior tamanho e grinaldas de folhas de louro.

Circundando este conjunto um friso com pequenas laçadas e cercadura formada por grinaldas de louro intercaladas por oito diamantes. O corpo da caixa é também decorado por grinaldas de louros sobre fundo liso. O interior é completamente liso, salvo pela presença da marca do ourives (GR: FRIEDLANDER BERLIM), da marca de pureza (585, correspondente a ouro de 14 quilates), e uma punção de uma coroa que poderia corresponder à marca usada na Alemanha, a partir de 1884, para o ouro (uma coroa num círculo que simboliza o sol –Sonne und Reichskrone-, em contraposição com o crescente de lua e coroa – Halbmond un Reichskrone– usado para a prata). No bordo, no encaixe da tampa, uma série de números riscados e parcialmente ilegíveis.

 

 

O estojo desta caixa é de cabedal vermelho apresentando uma coroa gravada a dourado no exterior e no interior, de seda branca, uma inscrição a preto encimada por uma coroa igual à do exterior: Gebr. Friedländer / Hof-juweliere / Sr. maj.d.Kaisers / Berlin W. (Irmãos Friedländer Joalheiros da Corte da Sua Majestade o Imperador Berlim W.).

 

 

A origem da casa Gebr. Friedländer (Gebrüder Friedländer – Irmãos Friedländer) remonta a 1829, ano em que Zadig Levin Friedländer (1801-1861) funda junto de Louis Saling a firma Saling und Friedländer. Em 1832 Saling abandona a empresa e em 1861, após a morte do pai, os irmãos Leopold (1832-1896) e Sigmund (1835-1890) Friedländer tomaram conta da firma que passa a ser conhecida como Gebr. Friedländer. Já em mãos da terceira geração, em abril de 1889, ser-lhe-á outorgado o título de Joalharia da Corte da Sua Majestade o Imperador, época na que a peça aqui em estudo foi produzida, sendo que este título aparece já inscrito no seu estojo.

 

 

A Gebr. Friedländer continuou ativa até 1938, ano no que é adquirida por Kurt Herrmann (1888-1959), de quem Hermann Göring (1893-1946) era cliente e amigo, que arianiza o nome para Deutsche Goldschmiedekunst-Werkstätten (Oficinas de Ourives Alemãs).

 

Outra caixa de rapé com o monograma do Kaiser Guilherme II pode ser vista aqui: https://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/2005/silver-vertu-l05765/lot.50.html, e uma cigarreira da casa Gebr. Friedländer, para Ferdinand I da Bulgária, realizada em 1908 quando este já era Czar, poder ser vista aqui (interessante reparar no monograma, igual ao da nossa caixa da C. M. Weishaupt und Söhne, realizada em Hanau uns anos antes):  https://www.lempertz.com/en/catalogues/lot/1116-1/169-a-bulgarian-royal-presentation-cigarette-case.html

 

 

 

NOTA: Para mais informação sobre caixas de rapé e sobre outras duas caixas da nossa coleção (embora neste caso de caráter mitológico apresentando o mito de Dionísio e Ariadne), consulte a Peça em Destaque do mês de maio de 2019 em: https://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/dioniso-e-ariadne-duas-caixinhas-de-rape-destaque-em-maio-2019/

 

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

 

Samantha Coleman-Aller

Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

 

 

Bibliografia

D’ALLEMAGNE, Henri René – Les Acessoires du Costume et du Mobilier, tome I, Paris: Schemit Libraire,1928

HABSBURG-LOTHRINGEN, Géza von – Gold Boxes from the collection of Rosalinde and Arthur Gilbert, London: R.& A. Gilbert, 1983

KENNETH SNOWMAN, Abraham – Eighteenth Century Gold Boxes of Europe, London: Faber & Faber, 1966

LLANOS, Jose de los ; GRÉGOIRE, Christiane – Musée Cognaq-Jay. Boites et Objects d’Or de Vértu, Paris: Paris Musées, 2011

NORTON, Richard and Mark – A History of Gold Snuff Boxes, Londres: S.J. Phillips, 1938

Catálogos

Catálogo do leilão da Christie’s de 25 de fevereiro de 1964: Fine Gold Boxes and Objects of Art and Vertu

VILAÇA, Teresa – Tesouros da Intimidade Real. Objectos do uso pessoal de Príncipes Europeus, Lisboa: Fundação Medeiros e Almeida, 2005

Webgrafia

Collecting Guide: Gold Boxes, em: https://www.christies.com/features/Gold-boxes-collecting-guide-9264-1.aspx?sc_lang=en

Fabergé Imperial Presentation Boxes, em: https://fabergeresearch.com/newsletter-2010-2011-winter/

Gold Boxes, em: https://www.vam.ac.uk/articles/gold-boxes

National Arms and Emblems Past and Present. Rulers of Bulgaria, em: http://hubert-herald.nl/INHOUD.htm

https://www.langantiques.com/university/

http://www.silvercollection.it/

Autor

Fernando I - Gebr. Friedländer (1829-1938) Guilherme II - C.M. Weishaupt & Söhne (desde 1837)

Data

Fernando I - 1887-1908 Guilherme II - após 1889

Local, País

Fernando I - Hanau (Alemanha) Guilherme II - Berlim (Alemanha)

Materiais

Fernando I - Ouro, diamantes, pedraria e esmaltes Guilherme II - Ouro, prata e diamantes

Dimensões

Fernando I - Alt. 4,8cm / Comp. 8,2cm / Larg. 11,1 cm Guilherme II - Alt. 3,1cm / Comp. 6,3cm / Larg. 9,2cm

Category
Destaque