Ampulheta – Destaque Março 2012

Destaque Março 2012

Ampulheta

Na sala dos relógios, em vitrina própria destaca-se um complexo instrumento de precisão que, pela suas caraterísticas materiais, formais e simbólicas, se mostra digno de um gabinete de curiosidades. Trata-se de uma ampulheta, objeto feito em meados do século XVII, para a elite prussiana.

Ampulheta:

Objeto para medir o tempo, também conhecido como relógio de areia. Criada por volta do século VIII, a ampulheta é dos meios mais antigos para se medir o tempo, juntamente com o relógio de sol e a clepsidra (relógio de água). O nome ampulheta tem origem na língua romana, de onde vinha o vocábulo ampulla, que significa redoma, referindo-se aos recetáculos de vidro.

Tradicionalmente é formada por dois recipientes de vidro cónicos, unidos, e contém no seu interior um material – vulgarmente chamado ’areia’ – que escoa entre os dois compartimentos.

Devido a este movimento, a ampulheta simboliza a contínua passagem do tempo, o seu fluxo inexorável bem como a transitoriedade da vida. Sendo associada ao passar do tempo, a ampulheta tornou-se símbolo recorrente na arte.

 

A peça:

A ampulheta da coleção é um objeto de medição do tempo formado por ampulheta, relógio, calendário e escritório. A composição formada por uma alma de madeira é inteiramente revestida (verso e anverso) com placas de âmbar esculpidas em baixo relevo, decoradas com medalhões de marfim trabalhados ostentando temáticas decorativas que evocam a passagem do Tempo.

 

A peça estrutura-se à volta do conjunto central composto por três âmbulas (elementos de vidro compostos por dois reservatórios unidos) suspensas no centro de uma coluna por sua vez encimada por um mostrador de relógio e assente numa caixa que forma um tinteiro de secretária.

O corpo da coluna é decorado na frente com um busto feminino em silhueta, a meia altura está fixo o conjunto formado pelas três âmbulas – cujas plataformas superior e inferior que a emolduram, curiosamente, não se unem -, no anverso uma roda permite girar o conjunto logo que a ‘areia’ se escoa.

Cada ampulheta é formada por duas âmbulas de vidro piriformes cujas bocas estão seladas uma à outra com cera ou piche e envoltas em pano de seda e fio de arame. O enchimento é feito com um pó preto – mármore moído ou metal moído (atualmente não escorre). Cada âmbula corresponde a diferentes tempos de escoamento; 15 minutos, 30 minutos e 1 hora.

 

O relógio – mais decorativo que funcional – com um só ponteiro, trabalharia consoante o movimento da ampulheta indicando os saltos de tempo. O mostrador em ébano, de numeração romana, insere-se num campo quadrado profusamente decorado com enrolamentos vegetalistas sendo ladeado por colunas torsas em âmbar e aletas vasadas e decoradas. Sobre o mostrador duas reservas com as inscrições SEMPER PRIMA e SEMPER VLTIMA (Sempre Primeiro, Sempre Último), um mote que pode estar relacionado com a temática da decoração ou com a família do encomendante. Por baixo do mostrador um medalhão representando a deusa Ceres segurando a cornucópia da abundância. O remate superior – ladeado por quatro esculturas de cavalos marinhos – é decorado com reserva onde uma figura feminina, rodeada por aves e nuvens de onde surge uma pequena cabeça masculina (Schedelock ?), segura uma ave em cada mão.

No topo deste remate, entre quatro pináculos, numa reserva oval, também de âmbar, a valiosa assinatura: MICHÆL SCHEDELOCK FECIT GEDANI (Michael Schedelock o fez em Gdansk).

 

 

O reverso, ricamente decorado, segue a mesma tipologia com medalhões alusivos ao Tempo – como o superior que representa uma figura dupla; humana e cadáver ou o central que representa uma figura feminina segurando o Sol e a Lua. Nesta face surge outro mostrador de marfim que assinala em placas ovais os meses do ano e sua duração em dias (por exemplo: FEBRUARIUS XXVIII) e numa abertura em arco apresenta os dias do mês (em números árabes) em disco rotativo.

O tinteiro da base apresenta os aprestos habituais: um areeiro, um recipiente para tinta, um compartimento com tampa (encimada por leão) para penas e outro para aparos (tampa lisa).

Os lados são decorados com oito medalhões representando cenas com divindades marinhas – Neptuno, tritões e sereias. O tinteiro assenta em cinco pés de bronze dourado tardios (os originais seriam umas bolachas em âmbar).

A peça, de tipologia única (são mais frequentes pequenos contadores e peças de carácter religioso) terá certamente tido lugar num gabinete de curiosidades (kunstkammer) de um nobre prussiano, possivelmente do Eleitor Frederico Guilherme de Bradenburgo (reinou 1640-1688) que foi grande encomendador de peças de âmbar nomeadamente para oferecer como presentes diplomáticos. Alguns motivos iconográficos, como o mote e a figura do leão, poderão levantar pistas quanto à sua encomenda, tendo o objeto que ser motivo de estudo mais aprofundado.

     

Origens:

Antes da invenção do relógio mecânico no século XV, o tempo era medido – pelo menos desde 1500 a.C. – com instrumentos usando o sol, o óleo, a cera e a água (na China também o fogo), não havendo registos da utilização de areia até à Idade Média em que uma ampulheta é representada pela 1ª vez em 1338 num fresco de Ambrogio Lonrenzetti ‘Alegoria do Bom Governo’ (Palazzo Pubblico de Siena). Tal facto é de admirar pois a tecnologia necessária à construção deste instrumento já era dominada anteriormente e o relógio de água – a clepsidra – funcionando com o mesmo sistema, era utilizado há séculos.

Quanto a registos escritos, o mais antigo é um pedido, feito em 1345 por Thomas de Stetsham, um empregado do navio La George, ao serviço do rei inglês Eduardo III, de 16 ampulhetes para bordo (para regular os turnos, estimar distâncias e ajudar a medir a velocidade em ‘nós’). Para além do uso na Marinha, as ampulhetas usavam-se também para controlar o tempo dos sermões nas igrejas e na Câmara dos Comuns, em universidades para as aulas, nas cozinhas para a preparação de refeições (existe a palavra inglesa ‘eggtimers’), em lojas e em fábricas para os turnos sendo também utilizadas por estudiosos ou simplesmente como objetos decorativos de luxo.

Envolvendo a manufatura grande perícia técnica, o seu uso é simples; o instrumento é colocado na vertical com o compartimento contendo a ‘areia’ na âmbula superior, obrigando, por força da gravidade, a que a ‘areia’ escorra para o compartimento inferior. Findo o processo, vira-se a ampulheta para recomeçar o processo sendo que a falibilidade do funcionamento é grande pois depende da rotação ser feita imediatamente a seguir ao total escoamento.

Numa ampulheta, os dois materiais mais importantes são as âmbulas de vidro e a ‘areia’ no seu interior. As primeiras têm que ser feitas com grande precisão para que o gargalo que liga os dois recipientes seja calibrado de maneira a condicionar o tempo pretendido de passagem da areia.

Até meados do séc. XVIII os dois balões eram feitos separadamente, juntando-se os dois gargalos com cera ou piche e envolvendo-se depois em pano (seda) e arame ou colocando-se entre os dois gargalos uma pequena peça metálica com um orifício calibrado.

O material do interior utilizado para escoar de uma âmbula para a outra tem que ser fino, seco e homogéneo de modo a ter um fluxo constante e a não reagir com o vidro; os mais utilizados eram a areia de rio, a casca de ovo moída, o pó de pedra, prata ou de estanho calcinado e misturado com chumbo sendo o mais reputado o pó de mármore de Carrara que, por ser muito duro, permitia uma leitura mais fiel.

 

 

O material:

O âmbar é constituído por resina de árvores fossilizada há milhões de anos por enterramento. Existem diversas variedades desta gema, de transparente a amarelo, laranja, acastanhado e mais raramente, vermelho, devido à idade, não é rara a inclusão de fósseis de insetos e plantas no material. Na Europa, as maiores jazidas de âmbar com 40 a 60 milhões de anos encontram-se ao longo da costa do Mar Báltico (por exemplo em Palmnicken, na antiga Prússia Oriental).

Utilizado desde a Pré-história, o âmbar foi visto durante séculos como um material precioso com propriedades mágicas, curativas e de deteção de venenos (ao mudar de cor). A Rota do Âmbar (ligava o Mar do Norte e o Mar Báltico a Itália, Grécia e Egipto) levou o material ao Império Romano onde foi largamente apreciado e utilizado.

Gdansk é uma cidade costeira do Mar Báltico que pertenceu ao reino da Prússia sendo, a partir do século XVII integrada na Polónia. Nessa altura a cidade era, juntamente com Königsberg, um grande centro de comércio de âmbar, produzindo diferentes objetos de decoração e adorno para as elites.

 

O autor:

A assinatura de uma peça do século XVII revela-se uma ocorrência rara. Sobre Michael Schedelock (Schödelook ou Schedloch) só se sabe que foi membro da corporação de artesãos de âmbar – a Guilda de Paternostermacher – (Dantzig) estando registado entre 1643 e 1672.

Conhecem-se três outras peças assinadas por este autor; um canhão em âmbar assinado e datado: ‘MICHAEL SCHÖDELOOK FECIT GEDANI – ANNO 1660’, pertencente à coleção Edrie von Vredenburgh (1986) (o par ter-se-á perdido na II Guerra Mundial), um fragmento existente no Museu Nacional de Estocolmo e um prato couvert (Viena de Áustria) assinado com as iniciais e datado de 1715 (se assim for, a sua carreira foi longa!).

Como nota de curiosidade, são também de Dantzig os autores da Sala de Âmbar encomendada em 1701 pelo Rei da Prússia e mais tarde oferecida ao Czar Pedro I da Rússia e instalada por Elisabete I em 1755 no palácio de verão em Tsarkoe Selo.

Assinatura

 

Proveniência:

A encomenda e percurso até finais do século XIX desta peça são desconhecidos. Em meados do séc. XIX, a peça pertenceu à coleção de Fréderic Spitzer (1815-1890), colecionador e comerciante de arte francês.

Em janeiro de 1929, foi vendida em leilão do espólio de Spitzer, na Anderson Galleries de Nova Iorque (lote 243), onde foi adquirida por um colecionador francês (Paris?) que a vendeu posteriormente.

Em 1972, Medeiros e Almeida adquire a peça ao famoso antiquário parisiense Nicolas Landau por um ‘preço exorbitante’ (palavras de Medeiros e Almeida), integrando assim a coleção.

 

Maria de Lima Mayer
Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

NOTA: A investigação é um trabalho permanentemente em curso. Caso tenha alguma informação ou queira colocar alguma questão a propósito deste texto, por favor contacte-nos através do correio eletrónico: info@casa-museumedeirosealmeida.pt

 

Bibliografia:

DELALANDE, Anna, Dominique, Eric; Sabliers D’Autrefois. Paris : Anna, Dominique, Eric DELALANDE, 2015

GUEY, Samuel et MICHEL, Henri; Mesure du Temps et de l´Espace, Lausanne: Office du Livre, 1970

ROHDE Alfred; Bernstein ein deutscher Werkstoff : seine Künstlerische Verarbertung vom Mittelalter bis zum 18. Jahnhundert, Berlin : Deutscher Verein für kunstwiss, 1937

TRUSTED, Marjorie; Catalogue of European Ambers in the Victoria and Albert Museum, London; Victoria and Albert Museum; 1985

VERVOORDT, Axel ; Hommage à Nicolas Landau « Prince des Antiquaires » (1887-1979), Paris: Galerie J. Kugel, 2006

Artigos:

PLAISIR DE FRANCE; M.P., Insolites et Insolents: Des Objets  aussi Rares que Précieux, Paris: novembro de 1967

THE BURLINGTON MAGAZINE; TRUSTED, Marjorie, Amber cannon by Michael Schödelock of 1660, Londres: novembro 1986

ANSELMO 1910; A Arte do Tempo, Lisboa: 2008

L+ARTE; ROQUETTE, Álvaro; Afinal há Coincidências, Lisboa: agosto 2007

Autor

Michael Schedelock (ativo 1643-1672)

Ano

3º quartel século XVII

País

Gdansk, Polónia

Materiais

Âmbar, marfim, madeira, vidro, ébano, arame e bronze dourado

Dimensões

Alt.56 cm x Larg.18 cm

Category
Destaque