Relógio da Noite

Relógio da Noite

Peça do mês de Setembro

Relógio de noite inglês, de mesa ou de parede, assente em mísula.
Caixa de ébano rectangular, decorada com tremidos, encimada por frontão de lanços e rematada por figura mitológica em bronze dourado. Mostrador rectangular em latão pintado, representando uma mansão com jardim onde figuras humanas se passeiam por entre ciprestes e estátuas.
Mostrador com abertura vazada em arco onde vai passando, um disco circular, colocado por trás, no qual é mostrada a hora, inscrita em pequenos medalhões circulares em numeração árabe (1 a 12). Os minutos são assinalados por pequenos recortes no exterior do arco, enquanto os números romanos I, II e III marcam o quarto, a meia e os três quartos de hora. Existe ainda, a indicação de meios quartos de hora assinalados por uma pequena abertura em forma de gota entre os números romanos. A hora surge no lado esquerdo do arco rodando para a direita até completar os sessenta minutos. As horas, os quartos e os orifícios que indicam os meios quartos eram visíveis de noite quando iluminados pela luz de uma candeia de azeite alojada no seu interior. Atualmente esta função é conseguida através de uma lâmpada elétrica colocada atrás do mecanismo.

A parte inferior da caixa tem a frente em vidro, revelando a candeia de azeite (não original), que era colocada por uma porta do lado direito.
Mecanismo de latão e aço, de duas rodagens accionadas por mola real com sistema de fuso, com escape de reencontro e pêndulo pré-suspensão. Controlo de badaladas por roda contadora de horas, no exterior da platina traseira, onde está a assinatura latinizada Eduardus East Londini (Edward East de Londres). Toque de horas em campainha de campanil.
Autonomia de uma semana.

 

Irmãos Campani e a invenção do relógio de noite
A invenção do relógio de noite remonta a meados do século XVII em Itália, pelos irmãos Campani. Nascidos em Castel San Felice na Umbria, os três irmãos Matteo, sacerdote, Giuseppe e Pier Tommaso mestres relojoeiros, transferem-se para Roma quando Matteo pároco na igreja de San Tommaso em Roma começa a circular no meio eclesiástico romano, o que lhe permitiu o acesso ao Vaticano e à corte papal.
Pier Tommaso destacou-se ao inventar mecanismos complexos de automatização dos relógios, recebendo do Papa Alexandre VII, o convite para fazer um relógio para Cristina da Suécia, que então visitava Roma para se converter ao catolicismo. Foi esta encomenda que o tornou famoso na corte papal, onde veio a assumir o cargo de relojoeiro oficial: “Come vorrei che qualcuno potesse inventare un orologio che mi consenta di discernere l’ora anche di notte! Uno che non richieda lo sprizzare di un lume per vedere il quadrante; e uno che non produca un rumore senza fine, quell’agitar di ruote che mi tiene sveglio per il resto della notte!” (Papa Alessandro VII)

 

(Tradução livre da autora: Como gostaria que alguém pudesse inventar um relógio que me permitisse ver as horas também de noite! Um que não precise acender um lume para ver o mostrador; e um que não produza um barulho sem fim, aquele agitar de discos que me mantém acordado o resto da noite.)

 

Face ao pedido do Papa, Pier Tommaso criou um sistema no qual, substituiu a roda de escape por um pequeno tambor moderador, que mais não era do que, uma caixinha cilíndrica de marfim, com várias divisões internas, por onde passava uma determinada quantidade de mercúrio, que assim regulava o mecanismo de uma forma silenciosa.
No entanto, esta solução revelou-se pouco precisa, tendo sido substituída por uma outra, desta vez mecânica: o sistema de escape era uma manivela que utilizava o pêndulo como elemento oscilante, dando ao relógio uma maior precisão.

O problema da leitura nocturna foi ultrapassado através de um sistema em que o mostrador passa a ser constituído por dois discos, um deles perfurado e fixo, onde estão recortados os quartos de hora e os meios quartos de hora enquanto o outro, móvel apresentava as horas, o cruzamento das duas placas correspondia à hora. De forma a ser visível, o dispositivo era iluminado por uma (duas ou três) candeia de azeite que assim realçava os algarismos perfurados. Possuíam ainda uma chaminé (que na maior parte das vezes se perdeu) para a saída de fumos e calor.
Após a resolução das questões técnicas, os irmãos Campani procuraram uma solução estética para integrar o mecanismo, tendo escolhido um modelo em voga na época, que seguia as linhas de um altar em forma de tabernáculo. A caixa construída em ébano ou na sua imitação apresentava um tímpano quebrado e colunas laterais, tal como nos altares e um painel de cobre pintado, sendo encomendadas a ebanistas e pintores de renome como Carlo Maratta e Filippo Lauri. Em geral, os temas decorativos eram de cariz religioso e mais excepcionalmente, mitológico. O primeiro exemplar foi apresentado ao Papa em 1656, tendo tido grande sucesso, atraindo novos clientes, popularizando-se entre as elites romanas e estrangeiras tendo-se tornado inclusive, presente de Estado (oferta do cardeal António Barberini a Luís XIV).
O seu êxito levou a que a técnica se tivesse desenvolvido através de outros relojoeiros noutras cidades italianas assim como em Inglaterra.

 

Edward East
Em Inglaterra temos notícia do fabrico de relógios de noite também no século XVII, através do trabalho de Edward East que assinou o relógio de noite que terá pertencido a D. Catarina de Bragança.
Nascido em Londres cerca de 1602, foi um dos principais relojoeiros ingleses do século XVII, começando a aprender o ofício de ourives em 1618, tendo terminando a sua formação em 1627. Nessa época ainda não existia a corporação dos relojoeiros, que só vem a ser fundada em 1631 e para a qual East foi eleito como membro em 1632, onde se veio a tornar mestre em 1645 e 1653.
A qualidade do seu trabalho levou a que Carlos II o tenha indigitado para o cargo de relojoeiro chefe, em 1660, lugar que ocupou até à morte ocorrida em 1697.
Sabemos ainda que em 1684, East aparece referido como sendo um dos relojoeiros tanto do rei como da rainha. Foi ainda um dos primeiros relojoeiros a aperfeiçoar o uso do pêndulo em Londres.

Samuel Pepys

“After dinner to White Hall, and there met Mr. Pierce, and he showed me the Queene’s bed-chamber, and her closet, where she had nothing but some pretty pious pictures, and books of devotion, and her holy water at her head as she sleeps, with her clock by her bed-side, wherein a lamp burns that tells her the time of the night at any time.” Samuel Pepys Diary 24 junho 1664

(Tradução livre da autora: Depois do jantar [fui] para White Hall e aí encontrei-me com Mr. Pierce, que me mostrou o quarto da Rainha [D. Catarina de Bragança] e o seu armário onde ela nada mais tinha que umas bonitas imagens religiosas, livros de devoção e a sua água benta junto à cabeceira enquanto dorme e o seu relógio ao lado da cama, onde uma chama arde e que lhe diz as horas de noite, a qualquer hora.)

 

Cronista de costumes, Samuel Pepys manteve durante cerca de 10 anos, entre 1660 e 1669 o seu Diary ou Journal onde relatou usos, eventos, factos sobre personalidades, que hoje são uma importante fonte para o conhecimento do quotidiano da Londres pós-Restauração.
Apesar de ter nascido num meio modesto, frequentou o liceu e mais tarde Magdalene College Cambridge (onde se conservam os seus diários) acedendo assim, a cargos públicos e passando a relacionar-se com as elites, tendo-se tornado secretário de Edward Montagu em 1665, o que lhe permitiu movimentar-se em lugares de destaque da sociedade inglesa.
Nota: Edward Montagu comandante da marinha, futuro conde de Sandwich, deslocou-se a Lisboa como embaixador extraordinário por ocasião da ratificação do tratado de Whitehall, das festas de casamento de D. Catarina de Bragança e da tomada de posse de Tânger. (FLOR, 2012)

 

É a partir da descrição publicada no seu Diary de 24 de Junho de 1664, que ficamos a saber que D. Catarina de Bragança possuía um relógio de noite no seu quarto, que aparece como sendo o que foi comprado por Medeiros e Almeida na Christie’s em Londres em 8 de Novembro de 1972 e referido diversas vezes como tendo pertencido à Rainha, embora esta atribuição nem sempre seja consensual.
“Antiques Trade Gazette de 4 de Novembro de 1972 e The Telegraph (?) Outubro de 1972 (?): Royal Clock that Pepys described is for sale – Keith Nurse”

Sendo ou não o que Pepys viu no quarto de D. Catarina, este não deixa de ser um belíssimo exemplar da relojoaria inglesa do século XVII e em particular, deste tipo de relógio de que existem tão poucos na actualidade. O seu escasso número deve-se ao facto de que facilmente se podiam incendiar devido ao calor emitido no seu interior. Por outro lado, a invenção do relógio com pêndulo sonoro emitindo as horas de noite, levou à sua rápida substituição e extinção, tendo sido produzidos apenas ao longo de cerca de 16 anos.

 

D. Catarina de Bragança
Nascida em Vila Viçosa em 1638 filha do futuro rei D. João IV e de D. Luísa de Gusmão.
Em 1662 parte para Portsmouth para casar com Carlos II, tendo sido o matrimónio celebrado a 31 (?) de Maio daquele ano. Do contrato de casamento, estabelecido em 1661, Portugal entrega a: “…Inglaterra a cidade e a fortaleza de Tanger com tudo quanto lhe pertencesse e a ilha de Bombaim na Índia Oriental, com todas as suas pertenças e senhorios, para ficarem daquele porto mais prontas as suas armadas para socorro das praças do Portugal na Índia.”
O casamento pouco feliz durou até à morte do rei em 1685 tendo D. Catarina permanecido em Inglaterra até 1692 ano em que regressa a Portugal, onde chega já no início de 1693.
Após a estadia em vários palácios, opta por mandar construir a sua residência na Bemposta ao Campo Mártires da Pátria, onde virá a falecer em 1705.
Diz a tradição que se deve a D. Catarina a introdução do uso do chá em Inglaterra no entanto, na 2ª metade do século XVII, período em que Inglaterra possuía um Império no Oriente, o chá há muito que era conhecido. A tradição poderá assim, referir-se ao facto de a nova rainha tomar chá a meio da tarde (lanche), tendo surgido desta maneira, o costume do five o’clock tea logo copiado pela corte.

 

Proveniência
Terá pertencido a D. Catarina de Bragança, Rainha de Inglaterra.
Pertenceu à colecção do Esquire James Oakes, tendo sido anunciada a sua venda na revista “The Connoisseur” de Março de 1949, pelo antiquário James Oakes, 6, Duke Street, St James’s, S.W.1, Londres
Adquirido em leilão da leiloeira Christie’s, Londres, de 8 de Novembro de 1972, lote 75, por £ 9.500 através do antiquário Wolf Steinhardt (Beco da Bicha, 3 Lisboa), agindo enquanto intermediário de Medeiros e Almeida.
Cristina Carvalho
Casa-Museu Medeiros e Almeida

 

Bibliografia
Antiques Trade Gazette 4 de Novembro de 1972.
BRITTEN, F.J. – Old clocks and watches and their makers. 5º ed,  [S/l], [S/dCatálogo Christie’s leilão de 8 de Novembro de 1972
FLOR, Susana Varela – Aurum Regina or Queen Gold. Fundação Casa de Bragança, [S/l], 2012

MARTE, Cherubina e SOPRANA, Stefano – Gli orologi notturni dei Papi: Le diverse letture del tempo nella Bibbia e loro applicazione nell’orologeria, Vicenza, 2007

NURSE, Keith The Telegraph (?) Outubro de 1972 (?) Royal Clock that Pepys described is for sale
JAGGER, Cedric – Royal Clocks the British Monarchy and its Time keepers 1300-1900. Robert Hale, London, 1983

 

Webgrafia
http://www.arqnet.pt/dicionario/catarinaing.html
http://www.pepys.info/1664/1664jun.html

Artista

Edward East (1602-1697)

Ano

1670

País

Inglaterra, Londres

Materiais

Ébano, bronze dourado, latão, metal e vidro.

Dimensões

Alt. 84 cm. x Comp. 39,5 cm. x Larg. 23,5 cm.

Category
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